Em tempos de pandemia, onde fica a solidariedade internacional?

A presente crise é um teste à nossa humanidade comum. Exigem-se, por isso mesmo, respostas à altura, que expressem de forma inequívoca esse sentido comum de cidadania, de empatia e de solidariedade global.

 

Os impactos da atual pandemia global na solidariedade internacional são já inegáveis. Enquanto os Estados da União Europeia revelam um aprofundamento de divisões que já tolhiam anteriormente a ação da União - visíveis durante o período de ajustamento ou no decurso da chamada crise de migrações -, nos serviços noticiosos chegam-nos ecos da predominância da competição sobre a solidariedade, seja na aquisição de equipamentos médicos e de proteção essencial para o combate ao vírus, seja na falta de acordo sobre instrumentos de mutualização do risco da dívida (os chamados “coronabonds”) ou até em alguma retórica de agressividade que reforça a desunião em vez da cooperação efetiva entre países europeus. Além disso, nestes tempos praticamente mono-temáticos nos media, a cobertura do drama humanitário dos refugiados às portas da Europa fica subitamente ausente do panorama noticioso, numa Europa que se fecha sobre si própria.

Sabemos que a balança entre a saúde e a economia, sem prejuízo de a primeira se sobrepor evidentemente à segunda, é de equilíbrio difícil, porque ambas as preocupações devem caminhar lado a lado nas respostas à crise, sob pena de os impactos conduzirem a efeitos indesejados e particularmente graves a nível político, económico e social. A pandemia terá impactos brutais e inevitáveis para todos os países, ricos e pobres, que se veem agora perante desafios inimagináveis, reforçados pela instabilidade e incerteza gerais sobre o futuro. Nos países mais pobres, onde boa parte da economia é formada por negócios informais, os impactos sociais da pandemia são particularmente perniciosos, pois muitas pessoas e famílias defrontam-se com a escolha impossível entre ficar em casa e evitarem a doença, ou saírem trabalhar e assim evitar a fome (vejam-se já os exemplos de países africanos, da Índia ou do Brasil). A pressão sobre os sistemas de saúde, que sentimos nos países mais ricos, é condição certa para a calamidade em países com fraca capacidade institucional, sem condições efetivas de resposta dos serviços sanitários e de saúde, com fraca proteção social e com enorme escassez de recursos humanos e financeiros.

Além disso, neste contexto global, o espaço para atuação da sociedade civil está particularmente ameaçado, acentuando uma tendência já anterior de limitação das liberdades individuais e coletivas, que se exprimia já numa dificuldade acrescida de defender os direitos humanos, no direito à liberdade de expressão ou no direito ao desenvolvimento. Torna-se, portanto, especialmente importante apoiar a capacidade de atuação das organizações da sociedade civil, quer no plano da assistência às populações quer no campo da advocacia e influência política, reforçando o seu contributo para a cultura democrática e para uma luta mais efetiva contra a pobreza e as desigualdades.

Por outro lado, a pandemia representa também uma oportunidade de repensar modelos de desenvolvimento e de organização da economia, reorientar padrões de produção e consumo, acelerar a transição energética e inverter o rumo desastroso de predação dos recursos e da degradação ambiental. O expectável reforço do protecionismo, ao nacionalismo, ou da competição da realpolitik também pode, e deve, ser contraposto por um reforço da cooperação e solidariedade internacionais. O apelo do Secretário Geral das Nações Unidas a um cessar fogo global é uma tentativa meritória de minorar os impactos da pandemia em países mais frágeis, afetados por conflitos e por diversas formas de violência. Um pouco por todo o mundo, assistimos também a sinais encorajadores, com a comunidade científica a colaborar entre si, várias empresas e Estados a tomarem medidas de proteção dos cidadãos e de apoio à ação comum contra a doença, e muitos cidadãos a mobilizarem-se para a entreajuda e a cooperação, para lá das fronteiras - sejam elas geográficas, étnicas, de estrato social e económico, ou outras.

Esse deve, também, ser o rumo escolhido na cooperação para o desenvolvimento. Mais do que nunca, é necessário que as necessidades e aspirações das pessoas sejam colocadas no centro dos processos de desenvolvimento, realizando esforços adicionais para concretizar a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável – que é, em si mesma, um enquadramento para a ação e resposta, comum e global. A enorme pressão sobre as finanças públicas exige escolhas difíceis nos países doadores, mas a sua ação nesta altura em particular pode fazer a diferença, reduzindo os custos humanos e económicos desta crise. Para isso, os apoios devem ser direcionados especialmente aos mais pobres e vulneráveis, a coordenação entre programas deve ser reforçada e deve ser feito um esforço adicional para a continuação de projetos/programas estruturantes. Flexibilidade é certamente uma das palavras-chave: flexibilidade para adaptar ou reorientar apoios e direcioná-los para o que é mais importante, para atuar cada vez mais em conjunto, para trabalhar de forma mais coordenada e para diversificar parcerias, ou até para demonstrar que aprendemos as lições de crises anteriores.

A presente crise é um teste à nossa humanidade comum. Exigem-se, por isso mesmo, respostas à altura, que expressem de forma inequívoca esse sentido comum de cidadania, de empatia e de solidariedade global.

 

Patrícia Magalhães Ferreira, investigadora e consultora independente sobre desenvolvimento e cooperação, e membro do Clube de Lisboa

Artigo publicado originalmente na Valle Flor Consulting, abril de 2020

Imagem: Hospital em Queens, Estados Unidos, abril de 2020. UN Photo / Evan Schneider.