Nenhuma pandemia é eterna

No último mês, 22 milhões de americanos ficaram desempregados, enquanto as previsões para a economia chinesa são de queda histórica. Isto quando prossegue o bullying às organizações multilaterais no meio de uma pandemia global. Que impactos políticos podem ser acelerados? E que efeitos pode a Europa esperar?

A politização da Organização Mundial da Saúde é mais um prego na destruição da arquitetura multilateral do pós-guerra. Não é novidade que a administração Trump o faça deliberadamente, mas o mecanismo para mascarar a desastrosa gestão da pandemia nos EUA é pouco sofisticado e nada inovador: encontrar um culpado externo para expiar culpa própria. A morosidade na atuação da OMS e o alinhamento entre cúpulas diretivas com Pequim podem ser altamente criticáveis e ferir a credibilidade da organização, mas não são essas as razões para a negligência da administração quando desvalorizou repetidamente informações sobre a pandemia produzidas pelas suas agências ou os alertas da sua comunidade científica. Se o America first era o caminho para o caos, o Trump first é um perigo à solta na democracia americana.

Na atual arquitetura multilateral existe já uma disfuncional gestão de conflitos armados, pandemias, desigualdades sociais, tiranias, narcotráfico, tráfico humano, crises financeiras e calamidades climáticas, imaginem se não existissem quaisquer fóruns de concertação com legitimidade reforçada para gerir as várias dinâmicas da globalização. Se já estamos vulneráveis, perderíamos ainda mais. Só há uma forma de travar este caminho: uma plataforma eleitoral anti-Trump em redor de Joe Biden, capaz de recompor o papel da América no mundo, corrigindo muitos dos seus aspetos, recuperando o tempo perdido com aliados, afastando a condescendência com nacionalistas, restituindo credibilidade, foco e recursos às instituições multilaterais na construção de soluções para as várias crises globais. Se o fizer com sucesso, é possível começar a trabalhar num plano transatlântico à altura da hecatombe que o covid-19 abriu, bem mais robusto para concertar as economias europeias e norte-americana (ainda o maior bloco comercial e económico do mundo), restituir confiança mútua hoje na rua da amargura, fortalecer a natureza plural e cosmopolita das suas democracias e solidificar com outro critério a integração europeia. Não faz qualquer sentido falarmos de um novo Plano Marshall sem os EUA na equação, até porque as dúvidas sobre a capacidade autónoma da Europa para responder à dimensão da crise permanecem.

Mas até isto acontecer, se alguma vez acontecer, há uma estratégia em curso para aproveitar vazios, amuos, separações, contradições, divórcios e ruturas irrecuperáveis na relação transatlântica, o espaço geopolítico que, melhor ou pior, conseguiu erguer uma comunidade de democracias, imperfeitas por natureza, mas pluralistas, de proteção social alargada, direitos e liberdades individuais constitucionalmente blindados, e respeito pela separação de poderes. A estratégia da administração chinesa, melhor dizendo, do exercício imperial de Xi Jinping, deve ser vista pela manutenção ou não das condições indispensáveis para continuar a levar a cabo uma proveitosa divisão transatlântica na fase pós-covid. Vale a pena olharmos para algumas delas.

A economia chinesa sofrera um abrandamento no ano passado. O covid-19 acelerou essa tendência, com previsões de contração na ordem dos 6% para o resto de 2020. É a primeira vez que tal acontece desde que, há 40 anos, Deng Xiaoping iniciou o "desenvolvimento pacífico" desta China global que dificilmente evitará consequências negativas. A primeira pode ser a quebra de protagonismo nas cadeias de abastecimento internacionais, por força da necessidade de autonomizar recursos, diversificar rotas e garantir produção industrial própria em regiões como a europeia. Neste sentido, é também a Belt and Road Initiative que pode sofrer impactos inusitados, quer nos investimentos previstos quer na aceitação da sua benevolência por parte dos destinatários.

Para já, o sinal é de continuidade, mas a verdade é que foi emitido por Orbán num abusivo estado de emergência, ao aprovar um acordo com Pequim para a construção da ferrovia Budapeste-Belgrado no valor estimado de 2,5 mil milhões de dólares, mas com conteúdo classificado propositadamente para que a opacidade continue a beneficiar a oligarquia do primeiro-ministro húngaro, sobretudo a construtora do seu fiel amigo, o magnata Lorinc Meszaros. Isto vai completamente ao arrepio das regras comunitárias e vale a pena disputar a validade da sua repetição noutros Estados membros, agora que a Comissão tem aprovado um modelo de vigilância mais apertado sobre estas práticas e quer estabelecer limites à participação chinesa em empresa europeias neste horizonte de fragilidade económica. Para cortejar os europeus a inverterem este caminho, correndo Pequim o risco de uma reaproximação entre aqueles e Washington caso o ciclo eleitoral americano o permita, Xi Jinping terá de recorrer a outras formas de soft power, como a garantia da reciprocidade económica, o respeito pela propriedade intelectual ou o congelamento de intenções territoriais.

Pode ir ainda mais longe, se a queda económica gerar um desemprego significativo na classe média, invertendo a tendência das últimas duas décadas, ou se for incomportável ao comité central prolongar a engorda das empresas estatais à custa da maioria do crédito bancário disponível, prejudicando a economia e o mercado interno. Lembro que as exportações contam hoje 19% do PIB, quando em 2008 representavam 32%. E sem um mercado interno equilibrado, estabilidade social e regeneração da banca, dificilmente a cúpula política continuará em estado de graça. Até porque a matriz do exercício do poder foi alterada por Xi Jinping: a acomodação de rivalidades e interesses passou a concentração implacável de todas as decisões; o pragmatismo deu lugar a rigidez ideológica e culto da personalidade; prevenção e discrição à repressão de minorias e vigilância maciça. Pode ser até que o alarmismo sanitário em que mergulhámos acelere esta repressão da privacidade, mas ninguém pode estar certo de que não existirá resistência. Ela pode vir do interior da China em crise económica, alimentada por protestos de estudantes, intelectuais e classe média afetada, ou do exterior, fruto de uma recusa mais generalizada em banalizar essas práticas mesmo em tempos excecionais. Ao abrirmos esta porta dificilmente ela voltará a fechar-se.

Um endurecimento do regime chinês, à falta de melhor estratégia para conter os efeitos económicos, sociais e políticos do covid-19, pode alienar a cumplicidade das democracias europeias conquistada na última década e contribuir para a reconstrução da relação transatlântica. Mas, lá está, para isso é preciso que Trump perca em novembro. Caso contrário, a Europa ficará entalada entre dois tubarões que fazem deliberadamente mal às organizações multilaterais e dilapidam a qualidade das democracias. Triste momento da história este em que uma grande democracia e uma grande ditadura são criticadas em paridade, no tom, no modo e no conteúdo. A maior virtude da primeira é poder mudar rapidamente o rumo em eleições livres e contribuir para uma regeneração transatlântica, mais solidária, contribuinte assumida de uma Europa mais unida, segura e capaz de se reerguer deste choque brutal que atravessaremos, preferencialmente ao lado do seu maior aliado dos últimos 70 anos. O que lhe antecedeu não se recomenda.

 

Bernardo Pires de Lima é Investigador universitário e membro do Clube de Lisboa.

Artigo publicado originalmente no Diário de Notícias, 18.04.2020

Foto de Charles Deluvio para Unsplash