A pandemia tem-nos fixado na Europa, China e EUA, deixando milagrosamente África fora dos radares. Há boas razões para isso. Até à data, o número de vítimas mortais é baixo (duas mil), se comparado com outras geografias, a taxa de infetados é cerca de 1% dos casos conhecidos globalmente, o confinamento foi decretado com rapidez na maioria dos países afetados, a baixa média de idades (19 anos) tende a resistir à expansão do vírus, e a resiliência provocada por epidemias passadas é igualmente apontada como escudo protetor. Este é o quadro otimista que favorece o relativo apagamento africano do infindável ciclo noticioso sobre a Covid-19. Mas há razões para alarme.
A OMS preveniu há dias para um pico de contaminação no espaço de um mês, mês e meio, apontando para 300 mil vítimas mortais e trinta milhões empurrados para a pobreza extrema. É uma subida exponencial num curto espaço de tempo num continente com enormes carências nos sistemas de saúde, acesso a medicamentos, ventiladores, além das condicionantes provocadas pelas alterações climáticas, como a seca extrema e prolongada em países como a Namíbia, Angola, Zâmbia ou Cabo Verde; a quebra na produção agrícola e o aumento da insegurança alimentar provocada, entre outros fatores, pela paralisação dos fluxos logísticos; a queda abrupta das receitas do petróleo quando uma esmagadora maioria dos países africanos depende desse recurso para alimentar 80% das receitas públicas; um tombo nas remessas de emigrantes, subida da fuga de capitais e desvalorização cambial; aumento preocupante das bolsas de insegurança terrorista, como no norte de Moçambique; e um declínio das receitas do turismo para economias muito dependentes, como Cabo Verde. Aliás, vale a pena mencionar o papel fundamental da União Europeia como rede imediata de auxílio financeiro ao arquipélago no último mês, dando eficácia a uma longa parceria estratégica virtuosa e benéfica para as partes, ações que muito devem ao trabalho extraordinário da embaixadora da UE na Praia, a portuguesa Sofia Moreira de Sousa.
É habitual olharmos para África e associá-la à omnipresença da China, esquecendo a Europa. Com isto não estou a desfocar a realidade, ela é suficientemente impactante para não ser descrita. O investimento e a presença chinesa é imponente nas grandes obras públicas, nas redes portuárias, na ferrovia, no comércio local, no financiamento à economia, no sistema de ensino, no setor militar, no fornecimento agrícola, no acesso ao medicamento, e na capacidade de influenciar decisões políticas. Num continente com 1,3 biliões de pessoas, 400 milhões abaixo do limiar da pobreza, com a média de idades mais baixa do mundo, a classe média que mais acelera, e com seis das dez economias que mais cresceram no último ano, faz todo o sentido que a China consolide África como protagonista dessa grande estratégia que o regime montou para este século, a Belt and Road Initiative. Só que este facto não inviabiliza um outro, normalmente desvalorizado na análise: a União Europeia é não só o maior investidor em África (três vezes o que investem EUA e China juntos), como tem outra proximidade geográfica e histórica, além de acompanhar a ambição dos países africanos em seguir alguns exemplos europeus no quadro da comunitarização das decisões.
É o caso da consolidação da União Africana como fórum político legitimado, da aprovação da maior área de livre-comércio mundial, da vontade em criar um amplo espaço de livre-circulação de pessoas e bens, um mercado único digital e de transporte aéreo, além de uma comunidade económica sob moeda comum. Vamos assistir a desacertos nestes percursos, adiamentos, correções, até recuos, mas o certo é que a inspiração parece evidente. E assim se abre a oportunidade de acomodar uma relação euro-africana mais madura, estratégica e equilibrada. É aqui que Portugal e a Alemanha podem acrescentar à tese uma dinâmica prática mais construtiva.
Importa sublinhar que a Alemanha é provavelmente o país europeu com a estratégia mais integrada para África, desenhada desde 2014 e acelerada com os impactos das grandes vagas migratórias e da subida da crise climática ao topo da agenda política internacional. É também Berlim que mais está a forçar a realização de uma grande conferência de dadores para África, ainda este mês, no quadro preventivo de próximos ciclos da pandemia (a meta são 100 mil milhões de euros), capaz de funcionar como rede de ajuda imediata aos efeitos da recessão económica africana, e propondo uma moratória sobre a dívida bilateral e multilateral para dar a folga financeira indispensável ao reforço dos sistemas de saúde pública e do combate à pobreza. Com a presidência da UE no segundo semestre deste ano, os alemães estarão, por um lado, confinados à pressão da aprovação de soluções comunitárias capazes de esbater a grande depressão económica que entretanto chegou; e, por outro lado, alargando o espetro dos riscos a África, liderando uma cimeira prevista para final de outubro em Bruxelas entre a União Europeia e a União Africana. O momento não é banal, requer mais ambição do que textos redondos, e é totalmente diferente ter Berlim na linha da frente da relação com África do que não ter.
Portugal, que sucede à Alemanha na presidência da UE, deve encarar este fator com assertividade, aproveitando as dinâmicas lançadas no segundo semestre deste ano para prolongar, com conhecimento mais profundo do terreno, uma agenda realista, eficaz e virtuosa para as partes. Por outras palavras, afirmar África no topo da agenda europeia. Este tem sido, aliás, um elemento que nos distingue da maioria dos Estados-membros, mas não inteiramente explorado para nos dar uma influência extra no debate comunitário. Podemos acrescentar ainda mais valor na cooperação militar, no ensino diplomático, na digitalização das empresas, na reconfiguração de algumas indústrias, na inovação científica, no intercâmbio universitário, ou no desporto enquanto fator de integração e mobilidade social. Linhas que podem ser maximizadas por um governo que conquistou um papel interessante no concerto europeu, pela positiva perceção externa sobre a gestão portuguesa da pandemia, e ainda pela especial ligação a África do Presidente da República, que poderia aproveitar o Grupo de Arraiolos, necessariamente reconfigurado, para projetar o seu potencial euro-africano. Nem de propósito, a próxima cimeira do Grupo está prevista para novembro, em Lisboa.
O facto de darmos total prioridade à gestão das dramáticas crises do presente não nos deve fazer esquecer que uma estratégia bem traçada com África pode evitar tragédias ainda maiores.
Bernardo Pires de Lima é Investigador universitário e membro do Clube de Lisboa.
Artigo publicado originalmente no Diário de Notícias, 09.05.2020
Imagem: Cimeira da União Africana, Adis Abeba, Fevereiro de 2020. UN Photo / Daniel Getachew.