Uma Alemanha europeia

Não vou ao ponto de dizer que a Alemanha é hoje o “gigante bom” da Europa, mas quero afirmar, sem a menor hesitação, que me parece óbvio que a Alemanha é hoje um fator incontornável de qualquer solução europeia. E ela sabe isso.

Por mais de uma vez, falei aqui nesta coluna no papel único que a Alemanha representa na Europa. O projeto integrador criado no pós-guerra, ou melhor, durante a Guerra Fria, só existiu pela consciência das democracias ocidentais, apoiadas pelos EUA, de que era indispensável ancorar definitivamente a Alemanha, nesse caso as três zonas de ocupação, a um modelo de liberdade, tutelado por um “chapéu” de segurança que se chamava Nato, isto é, América. A França, cooptada para os vitoriosos, funcionava como o parceiro central dessa aposta política.

Por muitos anos, a Alemanha teve a inteligência de manter um “low profile”. À esquerda e à direita, a sua classe política entendeu que lhe competia, essencialmente, projetar confiança e ganhar credibilidade. Fê-lo com grande cuidado na sua forma europeia de estar, nunca se mostrando demasiado “pushy”, aproveitando habilmente a sua insuperável prosperidade para assegurar meios que permitissem ir consolidando o projeto. O “tandem” com a França funcionou bem, em especial pelo facto de a fragilidade desta ter contribuído para lhe retirar o papel preeminente que, nas primeiras décadas, tinha assumido.

O fim da URSS, a libertação das “democracias populares” que viviam sob a tutela e/ou sob o temor a Moscovo, mudou tudo. O fim do muro, com a reunificação da Alemanha, trouxe, como contrapartida, o “empréstimo” do antigo marco para a credibilitação da nova moeda única. Mas algo mais aconteceu: a fronteira divisória da Guerra Fria, que passava pelo território alemão, agora reunificado, trouxe uma “buffer zona” de segurança a Berlim (e já não a Bona), com o alargamento da Nato a ser um fator decisivo.

Os alemães passaram a sentir o direito de afirmarem uma maior assertividade no processo interno europeu e só o não conseguiram fazer no plano externo, com a gestação de uma nova “ostpolitik”, porque a atitude de Moscovo, somada à polarização em sentido contrário dos seus antigos “satélites”, o não permitiu. Para ser mais claro: o sonho de Berlim é criar uma relação de estabilidade sustentada com a Rússia. O que se passou na Ucrânia, com a imbricação irritante dos EUA, não ajudou a isso. Mas a “aposta” da Alemanha num entendimento durável com a Rússia permanece nas cartas.

Não vou ao ponto de dizer que a Alemanha é hoje o “gigante bom” da Europa, mas quero afirmar, sem a menor hesitação, que me parece óbvio que a Alemanha é hoje um fator incontornável de qualquer solução europeia. E ela sabe isso.

No passado, Adenauer, Brandt e Schmidt garantiram as credenciais europeias do país. Kohl percebeu a oportunidade da falência da URSS, reunificou o país e firmou o euro. Merkel, que parecia um sucedâneo de Kohl, mostrou, nos últimos anos, que tem uma visão para a Europa.

Merkel cometeu erros importantes. Na crise financeira, deu, com Sarkozy, passos que muito ajudaram à crise das dívidas soberanas. Fê-lo por razões “democráticas”: a sua opinião pública não se sentia predisposta a gestos concessionistas, face à falta de rigor financeiro da orla norte do Mediterrâneo.

Mas Merkel mostrou o seu lado humanista na questão dos refugiados e, na crise económica gerada pela pandemia, ajudada por uma presidente da Comissão Europeia que, talvez não por acaso, é também alemã, está a tentar forçar soluções de solidariedade intraeuropeia que, há poucas semanas, pareciam impossíveis. Desafia o seu próprio Tribunal Constitucional, promove uma verdadeira mutualização de dívida e encara impostos europeus – tudo tabus há muito pouco tempo. Alguns dirão que ainda falta convencer os “frugal four”. É verdade, mas não creio que a chanceler e a presidente da Comissão, com o apoio do BCE, tivessem ido até ao ponto a que chegaram se não tivessem gizado já fórmulas de recuo para fazerem passar as reformas que ousaram propor, sem as descaraterizar.

Gosto desta Alemanha europeia, tanto quanto nunca gostei da ideia de uma Europa alemã.

 

Francisco Seixas da Costa, Embaixador e presidente do Clube de Lisboa

Artigo originalmente publicado no Jornal Económico, 11.06.2020

Imagem: Angela Merkel e Ursula von der Leyen no Conselho Europeu de 12-13 de dezembro de 2019. Foto de Etienne Ansotte, EC - Audiovisual Service, União Europeia.