Europa seis meses nas mãos de Merkel, ou seja, bem entregue

Bem me disse o biógrafo da então candidata democrata-cristã a chanceler que Ângela Merkel era capaz de surpreender.

 

Bem me disse o biógrafo da então candidata democrata-cristã a chanceler que Ângela Merkel era capaz de surpreender. E aconteceu logo naquelas eleições alemãs de 2005, que cobri para o DN, pois derrotou o social-democrata Gerhard Schröder e assumiu a liderança do país, posição em que se encontra até hoje, depois de mais três vitórias. Que seja a Alemanha, ou melhor ela, a encabeçar a reação europeia à crise gerada pela pandemia, é pois um sinal de esperança para todos.

Gerd Langguth, entretanto falecido, tinha toda a razão. Como alertara o biógrafo, Merkel é surpreendente, mesmo agora que todos consideram que prepara a despedida, não tencionando tentar o quinto mandato em 2021. Igualará os 16 anos de Helmut Kohl, o chanceler da reunificação de 1990, mas não os 19 anos de Otto von Bismarck, o obreiro da unidade alemã na segunda metade do século XIX. Deixará de certeza marca na Alemanha, na Europa também, e em que medida depende ainda como correrem os próximos seis meses, os da presidência alemã do Conselho da União Europeia que esta quarta-feira se inicia.

Não se trata da primeira presidência alemã assumida por Merkel, pois já aconteceu no primeiro semestre de 2007. A Europa, entretanto, mudou e muito, sobretudo depois das fraturas Norte-Sul causadas pela crise financeira de 2009 e mais recentemente pelo abandono do Reino Unido, o célebre Brexit. E talvez o resto do mundo tenha mudado ainda mais: Vladimir Putin continua a mandar na Rússia mas gera mais desconfiança no Ocidente do que nunca; Donald Trump à frente dos Estados Unidos faz George W. Bush deixar saudades em termos de cooperação transatlântica; e Xi Jinping não só manda muito mais do que Hu Jintao como a China já se permite dar ares de superpotência.

Negociar um novo e generoso orçamento para a União Europeia, incluindo os fundos necessários para reagir ao impacto da pandemia, negociar os termos definitivos do pós-Brexit e ainda lançar projetos como a digitalização e o pacto verde exige não só um país líder - e a Alemanha sabe-o ser quando quer - como um governante líder - e Merkel é-o sem dúvidas, como mostrou quando aprendendo com os erros afinou a meio a sua estratégia para o euro, também em 2015 quando abriu as portas do país aos refugiados e evitou uma tragédia ou ainda quando em 2010, estando a Alemanha representada no Conselho de Segurança da ONU, preferiu não apoiar o bombardeamento da NATO à Líbia, lembrando-se das cautelas de Schröder em 2003 em relação ao Iraque

Ao contrário da crise financeira de há uma década, que não chegou a fazer mossa na economia alemã, esta deste ano causada pela pandemia atingiu e em cheio a maior economia europeia, que vai ter uma recessão em 2020 de perto de 7%, mesmo que a sua gestão da covid-19 tenha sido mais eficaz do que a dos outros grandes dos 27, ou dos 28, se ainda contarmos o Reino Unido. Ora, para recuperar, a Alemanha precisa que a Europa recupere e só isso explica logo muito do apoio da chanceler aos países do Sul versus os chamados frugais. O sucesso de Merkel será o sucesso da Alemanha sem dúvida, e o dela própria, permitindo-lhe sair de cena em grande. Mas será também o sucesso da Europa e em especial de Portugal, que precisa da solidariedade europeia para e é o país que se segue na rotatividade das presidências..

Ah! Em 2005 também diziam que Merkel não tinha carisma. Bastou a primeira ida da chanceler a uma cimeira europeia para se desenganarem.

 

Leonídio Paulo Ferreira, Diretor do Diário de Notícias e membro do Clube de Lisboa

Artigo originalmente publicado no Diário de Notícias, 30.06.2020

Imagem: Angela Merkel no Parlamento Europeu, março de 2007. Foto de EC - Audiovisual Service.