Ouvi pela primeira vez o nome de Kamala Harris, agora candidata do Partido Democrático a vice-presidente, quando estive em outubro de 2016 na Califórnia numa reportagem para o DN com a comunidade portuguesa em San Diego. Era como hoje tempo de campanha eleitoral para a Casa Branca, e Hillary Clinton ainda surgia como favorita perante Donald Trump, mas também se renovava o Congresso e Harris destacava-se como candidata ao Senado.
De imediato, o seu perfil me fez recordar Barack Obama, o primeiro presidente negro dos Estados Unidos, então a finalizar o segundo mandato. Se este é filho de uma americana do Kansas e de um imigrante queniano, Harris por sua vez tem pai jamaicano e mãe indiana e representa ainda mais a nova América, em que a médio prazo os brancos deixarão de ser a maioria. E tal como aconteceu com Obama, não faltava já quem visse no Senado um mero trampolim de Harris para a Casa Branca.
O mais fantástico foi que a derrota de Hillary - e vamos agora tratar Kamala pelo primeiro nome não porque é mulher mas porque é um nome de guerra a impor respeito - permitiu que ainda senadora júnior, tal como aconteceu com Obama, ela estivesse já na corrida à presidência. Falhou, porém, e Joe Biden acabou por ser a aposta democrata.
Creio que Kamala fracassou nas primárias porque, entre outras razões, pareceu muito um Obama em versão feminina. Para derrotar Trump, Biden, o antigo vice de Obama, tem argumentos superiores, sobretudo na hora de recuperar eleitorado masculino branco em alguns estados decisivos. Mas como número dois, Kamala ganha sentido: tem um currículo como antiga procuradora-geral da Califórnia que lhe garante o entusiasmo tanto dos moderados como dos radicais do partido e pode, nestes tempos de debate sobre o racismo, garantir junto dos negros (eleitorado que vota democrata em 90% ou mais) a mobilização maciça a 3 de novembro que faltou a Hillary em 2016.
Por incrível que pareça é somente a terceira vez que uma mulher é designada candidata a vice por um dos grandes partidos (e Hillary foi a única à presidência). O reforço do voto feminino estará também nos objetivos de Biden com esta escolha da californiana.
De certa forma, com este ticket, como dizem os americanos, os democratas voltam à velha ideia de apresentar uma dupla de candidatos que se completa: Biden foi senador pelo Delaware, na costa atlântica, a parceira vem da costa do Pacífico; ele tem mais de 70 anos, ela é uma "jovem" de 55; ele vem da tradicional maioria branca (só não é um WASP porque é católico) ela representa a América miscigenada: e por aí fora.
Trump atacou a escolha de Kamala lembrando como esta criticou Biden nas primárias democratas. Mostra desconhecer a tradição americana. Só um exemplo: há 60 anos, o veterano senador do Texas Lyndon Johnson fracassou nas primárias democratas frente ao jovem John Kennedy, do Massachusetts. Nada parecia opor mais as duas figuras, desde o estado de origem até às origens sociais. Construíram uma dupla vencedora, tirando a Casa Branca aos republicanos. Porém, tal como Richard Nixon, vice de Dwight Eisenhower, vendeu cara a derrota, também é cedo para dar Trump por derrotado, pois o Colégio Eleitoral dá-lhe mais hipóteses do que voto popular (tal e qual em 2016).
Mas, e voltando a Johnson, se este foi um presidente em 1963 inesperado, por causa do assassínio de JFK, Kamala é um nome muito provável na Casa Branca como número um se Biden vencer este ano. O antigo vice-presidente, que em 2016 não concorreu, muito provavelmente só fará um mandato e em 2024 entregará a Kamala a hipótese de disputar a presidência. Até isso a torna ainda mais um trunfo eleitoral e muito mais do que uma versão feminina de Obama.
Leonídio Paulo Ferreira, diretor do Diário de Notícias e membro do Clube de Lisboa
Artigo publicado originalmente no DN, 12.08.2020
Imagem: Casa Branca, foto de David Everett Strickler em Unsplash