O Estado que o Líbano nunca foi

As crises vão naturalmente continuar. Não estão reunidos os pré-requisitos básicos para se ter estabilidade ou efetuar uma reforma política. O Líbano mais parece um Estado falhado.

 

A origem da maioria dos conflitos com que nos confrontamos atualmente remonta ao período colonial e ao modo como as potências coloniais dividiram ou juntaram grupos étnicos sem afinidades num mesmo Estado, de modo a melhor satisfazerem os seus interesses. Os ingleses foram o expoente máximo dessa prática – Israel/Palestina, Sri Lanka, India/Paquistão, Iraque, Sudão, Somália, Nigéria, Afeganistão, etc.. O Líbano moderno é mais um exemplo disso, mas desta feita protagonizado pela França. Os problemas com que o país hoje se debate são ainda um reflexo do mandato francês para a Síria e Líbano e da demarcação das fronteiras entre aqueles dois países feita pela França, em 1920.

A conhecida animosidade entre as “comunidades libanesas” não obstou a que se tivesse duplicado a área do novo Estado, nele incluindo território predominantemente muçulmano e druso, alterando significativamente a demografia do país. A França moveu a fronteira entre a Síria e o Líbano para leste, passando a incluir territórios que durante séculos pertenceram à província de Damasco (do Império otomano), dividindo aldeias sírias no sul e oeste, adicionando-as ao novo Estado.

O resultado dessa engenharia foi a criação de (pelo menos) dois Líbanos. O muçulmano árabe do interior a olhar para Damasco, com pouco em comum com o cristão maronita do litoral, que reverencia a França. Só uma minoria de xiitas e sunitas fala francês. São nações que não partilham a mesma história, cultura e língua, e que desde o século XIX se têm guerreado ciclicamente, mesmo quando a região se encontrava sob a alçada do Império otomano.

A Constituição do Estado libanês baseia-se numa fórmula consagrada na academia por consociacionalismo, desenhada pela França para garantir a predominância política dos cristãos. Assenta na partilha/equilíbrio de poder entre os vários grupos religiosos em que o Chefe de Estado é cristão maronita, o presidente do parlamento muçulmano xiita, e o primeiro-ministro muçulmano sunita.

Embora concebido para manter a paz entre os diversos grupos e assegurar que todos os libaneses tivessem uma palavra no governo, o sistema foi capturado por uma elite gananciosa, um pouco como vem acontecendo nas democracias liberais ocidentais, que gere e distribui empregos numa base sectária. Uma das condições fundamentais para o sucesso do consociacionalismo reside na cooperação entre as elites dos diferentes grupos que formam a sociedade, o que esteve e está longe de se verificar. Já era óbvio em 1920 que este não se encontrava preparado para uma solução deste tipo. Tudo é formal ou informalmente dividido segundo uma lógica sectária entre cristãos e muçulmanos, e qualquer decisão é vista numa lógica política e de soma zero (vantagem para um grupo significa desvantagem para outro).

As promessas de ajuda humanitária são naturalmente bem-vindas, mas não resolvem o problema estrutural que afeta o país. As crises vão naturalmente continuar. Não se encontram reunidos os pré-requisitos básicos para se ter estabilidade ou efetuar uma reforma política. O Líbano mais parece um Estado falhado. Em vez da piedade humanitária anunciada, seria mais proveitoso se Macron se disponibilizasse a corrigir os erros dos seus antecessores, e ajudasse os libaneses a encontrar uma fórmula política que os aliviasse do infortúnio cíclico que os atinge.

 

 

Artigo publicado originalmente no Jornal Económico, 28.08.2020

Carlos Branco é Major-general, Investigador do IPRI-NOVA e membro do Clube de Lisboa

Imagem: Beirute, Líbano. Foto de Christelle Hayek em Unsplash