O mundo que aí vem

Os analistas interrogam-se como será o mundo pós-covid-19. Para além dos aspetos económicos e de saúde pública, as preocupações das grandes potências centram-se nos efeitos geoestratégicos da pandemia.

 

Os analistas interrogam-se como será o mundo pós-covid-19. Para além dos aspetos económicos e de saúde pública, as preocupações das grandes potências centram-se nos efeitos geoestratégicos da pandemia. Aqui, as opiniões dividem-se. Há quem pense que a Covid-19 será responsável por uma grande alteração de poder na Ordem mundial, em benefício da China, marcando o fim da hegemonia americana e o advento de um mundo multipolar. Para estes, a pandemia é uma ameaça à supremacia dos EUA. A China emergirá vitoriosa e ultrapassará os EUA na liderança da Ordem, transformando-se eventualmente numa potência hegemónica. Associado a esta evolução, a China exportará o seu modelo social e político provocando uma viragem autoritária no mundo. Parece-nos cedo para fazer este tipo de avaliações. Contudo, seria incauto decretar antecipadamente a “derrota” dos EUA, dada a sua resiliência e a imensidão de recursos à sua disposição.

Outros, menos alarmistas quanto à dimensão catastrófica dos efeitos geoestratégicos provocados pela pandemia, consideram que os EUA manterão a liderança da Ordem. São céticos quanto à alteração da relação de poder entre os EUA e a China. Próximo desta linha de pensamento, há quem defenda que ambas as potências ficarão profundamente debilitadas.

Os analistas debatem-se igualmente sobre o futuro da China. Uns argumentam que a redução no comércio mundial a fará virar-se para o interior, procurando desse modo continuar a crescer e assim compensar as perdas económicas resultantes daquela diminuição. A sessão do Congresso Nacional do Povo realizada em maio de 2020 deu-nos indicações sobre essa possibilidade (estabilizar o emprego, aumentar o nível de vida e eliminar a pobreza). Contudo, não é ainda claro que opções estratégicas de desenvolvimento a China vai priorizar (interno ou externo), e o seu impacto no desenvolvimento da Belt & Road Iniciative (BRI). A ser este projeto severamente afetado, como se prevê que seja, as ambições geoestratégicas chinesas não sairão incólumes desta crise. Resultado do abrandamento económico, alguns projetos encontram-se em dificuldades, e a possibilidade de a China vir a ombrear com os EUA como uma “potência europeia” ficará por enquanto congelada.

Para lá das possíveis consequências geoestratégicas provocadas pela pandemia, a estridente reação anti China da Administração Trump deve ser analisada de duas perspetivas distintas: no contexto das eleições presidenciais americanas a ocorrerem em novembro de 2020; ou como uma oportunidade estratégica a explorar. O alegado encobrimento da pandemia pelas autoridades chinesas, e a guerra de informação que se seguiu, serviu, por um lado, de alibi para ofuscar a resposta incompetente e medíocre da Administração Trump, por outro, para reforçar e ampliar dinâmicas já em curso, nomeadamente a implementação das políticas comerciais adotadas por Donald Trump desde que chegou à Casa Branca, as quais tinham por objetivo desacelerar a globalização e desconstruir paulatinamente a arquitetura de governança económica global desenvolvida nas últimas três décadas.

Apesar da pandemia poder alargar as feridas abertas por Trump na globalização económica, isso não significará o seu fim. A interdependência económica é resiliente e não desabará facilmente. Uma dessas feridas foi causada pelas políticas protecionistas, que tinham por intuito minorar e reverter o impacto negativo da globalização na economia americana, e renovar o contrato social com os americanos criando empregos nos EUA através da relocalização das empresas que tinham deslocalizado a produção para a China. Além de procurar reduzir a dependência produtiva da China, essa política visava impedir o seu crescimento e fazê-la soçobrar economicamente.

A pandemia poderá ter criado condições para reforçar e acelerar um processo já em movimento. Poderá ter-lhe dado um sentido de urgência. Alimentou e legitimou uma retórica que apelava à tomada de posições mais duras contra Beijing. Está por saber se essa retórica se resume apenas a lenha para a caldeira eleitoral que se aproxima, ou se vai concretizar-se em algo mais substantivo, para lá das eleições presidenciais americanas, assumindo então uma dimensão geoestratégica. Neste último caso, urge determinar o impacto dessas políticas nacionalistas e o papel dos EUA na economia global, nomeadamente em matéria de regime de comércio internacional.

Em paralelo com a guerra comercial desencadeada contra a China, a pandemia veio alentar o debate sobre as políticas económicas nacionalistas, de que a relocalização de fábricas instaladas na China é apenas um dos capítulos. A pressão para abandonar a China e regressar aos países de origem alargou-se a outros governos. O Governo japonês anunciou um programa de subsídios no valor de $2 mil milhões para apoio às empresas japonesas que pretendam abandonar a China e relocalizar a produção no Japão.

Na União Europeia ouviram-se apelos semelhantes. Ao mesmo tempo que Bruxelas dava orientações aos Estados membros sobre a aquisição por estrangeiros de ativos tecnológicos críticos, preparava o lançamento de um fundo para subsidiar Estados membros e empresas, que pretendessem reduzir a sua dependência da China, e aumentar a sua participação no capital de empresas europeias. A Alemanha estabeleceu um bailout fund destinado ao controlo de empresas alemãs em situação difícil, para assim desencorajar a sua aquisição por estrangeiros. Os Estados da União Europeia que assinaram acordos com a China no âmbito da BRI foram sujeitos a pressões para se distanciarem de Beijing.

Apesar deste alinhamento de posições entre Bruxelas e algumas capitais europeias com Washington, estão ainda por definir os termos do futuro relacionamento da União com Beijing e com Washington, esses sim de consequências geoestratégicas tremendas. Procurará a União, em conformidade com a parceria transatlântica, colocar-se ao lado dos EUA no confronto com a China, ou definirá essa relação nos seus próprios termos e interesses, independentemente dos EUA, procurando estabelecer uma relação com base no compromisso, respeito mútuo e reciprocidade? A primeira opção tem igualmente consequências dramáticas, uma vez que poderá alimentar o projeto de uma NATO global, numa lógica belicista, nada favorável aos interesses da Europa.

O apelo patriótico ao abandono da produção na China pelo Presidente Trump requer uma avaliação cuidadosa, uma vez que não significa necessariamente a relocalização da produção nos EUA. A produção tem de abandonar a China, mas não é crime de lesa-pátria relocalizar noutros locais da Ásia (Índia e Vietname, entre outros), México, ou África onde seja possível manter a competitividade através de baixos custos de produção. Esta solução continua a ser simpática para as multinacionais, mas continua a não resolver o problema dos empregos nos EUA. 

Não é óbvio como é que empresas americanas sediadas na China vão trazer para os EUA toda ou parte do seu processo produtivo, nem evidente como é que esse regresso se vai traduzir na criação de postos de trabalho nos EUA. A relocalização da produção traz acoplada uma série de problemas. Não é imediata, demora anos, requer capital humano capaz, e no curto e médio prazo acarreta prejuízos. Será difícil para os EUA reduzirem significativamente a sua dependência da capacidade de fabrico chinesa, sem repercussões económicas negativas. A complexidade do “desacoplamento” difere de setor para setor. É mais difícil nos setores de alta tecnologia, onde é improvável que ocorra por completo, mantendo-se a dependência das cadeias de fornecimento chinesas. Não é adquirido que estas políticas económicas nacionalistas consigam produzir o efeito desejado. 

A guerra comercial com Beijing, que visa, acima de tudo, desincentivar a presença de empresas americanas na China e, em última análise, atingir a economia chinesa, foi outra vítima da pandemia. Com base no alegado " manuseamento incorreto" do surto de Covid-19 pelas autoridades chinesas, Trump fez novas exigências e impôs tarifas punitivas adicionais. Com a redução do comércio mundial, será difícil para a Beijing honrar o volume de importações acordado com Washington. A situação entre os dois países complicou-se com o boicote das autoridades americanas aos produtos chineses de alta tecnologia, nomeadamente telecomunicações, bloqueando o acesso das empresas chinesas ao mercado de semicondutores. A China poderá retaliar, dentro das suas possibilidades, impondo restrições a certas empresas americanas que operam em território chinês (Qualcomm, Cisco, Apple, etc.), suspendendo as compras da Boeing, e impedindo o acesso dos gigantes tecnológicos e industriais americanos ao mercado chinês.

A exploração da pandemia, a continuação da guerra comercial, a relocalização de empresas associada ao desacoplamento económico, e a redução da dependência da China como elemento chave das cadeias globais de fornecimento são elementos de uma guerra cujo resultado ditará a futura correlação de forças mundial. É nessa perspetiva que têm de ser vistos. A desaceleração económica que a conjugação destes fatores provocará no curto prazo é o preço a pagar, na esperança de um benefício no médio e longo prazo. Como num combate de boxe, o vencedor raramente sai ileso. O que interessa é o resultado final.

Uma recessão nos EUA terá consequências negativas para a economia chinesa, cujo crescimento depende do comércio internacional. Serão dramáticas se a recessão se prolongar. Os aspetos económicos desta confrontação são importantes, mas não decisivos. A geoestratégia falará mais alto do que a economia. Trump procurará tirar partido da dependência chinesa das exportações e da sua vulnerabilidade às oscilações da procura global, explorando a diminuição do comércio internacional causada pela pandemia. Resta saber se este será o momento mais adequado para travar esse combate. Se o resultado não lhe for favorável, Trump poderá não ter tempo para recuperar e apresentar-se às eleições sem coroa de louros.

Um aspeto a merecer também uma consideração geoestratégica é a histórica redução do consumo de hidrocarbonetos causada pela pandemia, em particular de petróleo. Os produtores americanos a partir do shale, com uma existência atribulada antes da epidemia devido à disputa de preços entre a Rússia e a Arábia Saudita, veem agora os seus problemas agravados. Os EUA deixarem de ser um exportador de petróleo passando a ser novamente importadores, o que veio beneficiar a Arábia Saudita. Veremos se a indústria americana recuperará quando a situação se normalizar.

Como já sublinhado, assistimos durante a fase inicial da pandemia à quase total inoperância das instituições multilaterais. Não deixou de causar perplexidade a incapacidade demonstrada, tanto pelas organizações e arranjos internacionais (ONU, G7, G20, UE, etc.) como pelas grandes potências, para concertarem uma resposta coletiva ao flagelo pandémico causado pela Covid-19. Em meados de maio de 2020, após dois meses de negociações, o Conselho de Segurança da ONU, o areópago por excelência do multilateralismo, não tinha ainda conseguido acordar o texto de uma Resolução sobre a Covid-19.  Gorou-se, assim, a tentativa de materializar, através de uma Resolução do Conselho de Segurança, o apelo do Secretário-Geral António Guterres para uma cessação global de hostilidades durante 90 dias, que permitisse fornecer assistência médica às populações em regiões assoladas por conflitos. Os EUA exigiam que o texto incluísse uma referência a Wuhan, na China, como o local de origem do vírus, o que a China se recusou a aceitar. A discórdia alargou-se à inclusão de uma referência positiva sobre o papel desempenhado pela Organização Mundial de Saúde durante a crise, instituição que tem estado sob fogo cerrado do Presidente Trump, acusando-a de tratar a China de um modo privilegiado.

Por sua vez, a resposta da União Europeia à pandemia também ficou aquém do esperado, sendo praticamente irrelevante na fase inicial, quando o apoio era particularmente necessário. Para além dos mecanismos de cooperação em matéria de proteção civil da União não terem sido desenhados nem concebidos para enfrentarem desafios desta natureza, tardou em acordar um programa de recuperação económica devido à discordância de alguns dos seus membros sobre os caminhos a seguir. A condenação do Tribunal de Justiça da União Europeia pelo Tribunal Constitucional alemão devido ao apoio dado ao programa de quantitative easing lançado pelo Banco Central Europeu não veio ajudar. Um não acordo sobre medidas de apoio económico e financeiro às economias dos Estados membros pode traduzir-se num revés fulminante para o projeto europeu, com consequências geoestratégicas dramáticas. A isto adiciona-se o aumento de importância dos Estados-membros, não só na sua relação com o centro, contribuindo para desacelerar o processo federativo em curso na União Europeia, como no domínio económico, podendo assim contribuir também para a desaceleração da globalização.

A resposta à pandemia veio demonstrar a importância dos Estados. Mesmo não preparados, foi neles e não nas organizações internacionais que assentou a resposta ao desafio colocado pela Covid-19. As respostas foram acima de tudo nacionais. Foi para os Estados que as populações se viraram no momento de aflição. De uma forma perversa, a pandemia contribuiu para reforçar o espírito de coesão nacional, e demonstrar que os Estados-nações estão aí para ficar, e não são entidades passageiras e obsoletas. O combate à Covid-19 funcionou como o teste do algodão à legitimidade dos governos nacionais. As visões globalistas da história e do mundo tão a gosto das chamadas elites liberais internacionalistas perderam terreno, que tão cedo não recuperarão.

 

 

Carlos Branco é Major-general, Investigador do IPRI-NOVA e membro do Clube de Lisboa.

 

Excerto do livro "Do fim da Guerra Fria a Trump e à COVID-19: as promessas traídas da ordem liberal", cujo lançamento ocorre no dia 12 de setembro (sábado) às 12h00 na Feira do Livro de Lisboa - Auditório Sul (Parque Eduardo VII, Lisboa). O livro está também disponível no stand das Edições Colibri.