Guiné-Bissau, Terra de contrastes

Fotografia por Gonçalo Ribeiro Telles

TRANSFORMAÇÃO

Contrariamente ao que muitas vezes se julga quando a análise do presente descura o olhar histórico, a Guiné Bissau é um dos maiores laboratórios práticos de ciência política no mundo. Existem poucas situações que não tenha experimentado num passado mais ou menos recente. Golpes de estado, esclavagismo, colonização, guerra civil, epidemias, lutas de libertação seguidas de algumas tentativas que resultaram em disfarces democráticos, tutelas e um palco contínuo das maiores quezílias e disputas internacionais.

No meio desta amálgama, surge outra realidade mais rica, igualmente diversa que é composta pela geografia de norte a sul, assim como das diferentes etnias dos guineenses, cerca de dez, que compõem este pequeno Estado da África Ocidental. As etnias com maior expressão na sociedade guineense são as fulas, balantas e mandingas, seguidas dos papeis e manjacos. Enquanto as pessoas das etnias nalu, saracule, sosso, entre outras estão abaixo dos 1% da população. Não se deve dissociar de qualquer análise política, social ou cultural este multiculturalismo étnico que além de caracterizar, ajuda a entender e definir o país.  

Para o bem, mas ainda mais para o mal, uma e outra dimensão confundem-se e influenciam-se.

 

CONTRASTE

O contraste começa por aqui. É um país maravilhoso que conheci pela primeira vez, de lés a lés, há quase doze anos. Senhores de um património verdadeiramente distinto e fascinante em termos culturais e naturais, procura acolher a variedade de todos os povos, tradições, espécies raras, flora selvagem e recursos marinhos que se desvendam a partir das mais de 80 ilhas, ilhéus e ilhotas do Arquipélago dos Bijagós. É daqui, da floresta e segurança alimentar que se conquista um equilíbrio ecológico distinto, posicionando-o como um dos locais mais relevantes na concentração da biodiversidade em África.

Uma riqueza que passa despercebida quando a caraterização global do país pela via política é a de um Estado falhado, tentando sobreviver de golpe em golpe, sem nunca alcançar a estabilidade. A corrupção é dominante e tem sido agravada desde que o país passou a fazer parte da rota dos narcotraficantes de alguns países da América Latina que utilizam o território guineense como uma das plataformas da África Ocidental para a entrada de cocaína na Europa.

Os atuais índices de pobreza extrema mantêm-se avassaladores e algum do ideal de Amílcar Cabral, conforme expresso pelo ideólogo e político guineense num discurso em 1974, continua longe de se concretizar na sua plenitude: “É uma luta para ter pão, para ter terra, mas livremente. Uma luta para ter escolas, para que as crianças não sofram, para ter hospitais. É assim a nossa luta. É também uma luta para mostrar à face do mundo que somos gente com dignidade.”

O processo que levou à independência foi a primeira grande conquista nacional, mas na prática, o novo Estado nunca se libertou do jugo de sangue nos conflitos que se seguiram.

 

DECLÍNIO

Em suma, a independência não significou a liberdade. O país transitou para um regime de polícia militar que ficou marcado pelas perseguições, prisões arbitrárias e assassinatos dos que eram considerados adversários e críticos do novo sistema vigente. A independência, proclamada em 1973, reconhecida pelas Nações Unidas e por Portugal um ano depois, tornava expectável todo o desenvolvimento infraestrutural e a reforma do sistema educativo. Ao longo dos anos, isso nunca se verificou com a abrangência necessária. Pouco depois em 1980, o primeiro presidente do país, Luís Cabral, é deposto na sequência de um golpe militar liderado por João Bernardo Vieira (“Nino” Vieira) que, sem visão e de forma repressiva, sempre descartou uma comunhão com Cabo Verde - um dos propósitos maiores do seu antecessor. Nino Vieira foi mesmo a primeira e provavelmente a maior pedra no sapato do desenvolvimento guineense. O desejo de eliminação de todos os seus rivais políticos e de qualquer sinal de oposição à sua política marcariam a génese do descontrolo que se apoderaria das rivalidades nas esferas mais altas do Estado guineense. Aristides Pereira, presidente cabo-verdiano de 1975 a 1991, corroborou este facto e afirmou mesmo que o assassinato de Nino Vieira em 2009 foi o final trágico de um processo iniciado em 1980 pelo próprio. Ainda antes, entre 1998 e 1999, Nino Vieira viria a sobreviver a uma guerra civil no país. Também conhecida como a Guerra de 7 de junho. O rastilho deste conflito dá-se com a decisão do presidente de afastar o General Assumane Mané do cargo de Chefe de Estado Maior das Forças Armadas que estava implicado no tráfico de armas a dissidentes senegaleses de Casamansa. Ao sentir-se traído por Vieira, Assumane Mané acaba a denunciá-lo como mentor do comércio de armas. Na madrugada de 7 de junho, o general resistiu à prisão e invadiu o quartel de Santa Luzia. A grande maioria dos militares apoiou Mané, mas Nino Vieira teve o apoio das tropas senegalesas que foram protagonistas de violentas cenas contra a população civil. Algumas imagens deste massacre encontram-se retratadas no documentário guineense, a revolta dos mais velhos. Também Tony Tcheka, escritor e poeta guineense, escreve sobre este dia no poema Êxodo que descreve de forma sofrida e crua os sentimentos vividos:

 

Balaios de mágoas                                                                                                                 

corpos sofridos

dores encruadas cruzam-se em estradas de ninguém

caras tisnadas de sofrimento baldeados

sem caminhos

magotes de guineenses fugindo da sua Guiné

terra seca

insuflada de pólvoras de ódio

 

Com a liberalização da economia e o primeiro Programa de Ajustamento Estrutural a partir de 1982, através da chancela do FMI e Banco Mundial, nunca se conseguiu abrir verdadeiramente o mercado como se queria aos privados e ao comércio internacional. Que era o que mais interessava. Em vez de gerar potência, o liberalismo tornou o país excessivamente dependente num ponto sem retorno até hoje, com a produção e exportação praticamente exclusiva da castanha do caju apenas para o sudoeste asiático. Sendo totalmente dependentes de bens essenciais.  

A crescente desvalorização da moeda nacional, a incapacidade de controlar a inflação e atrair investimentos internacionais, obrigou Bissau a aderir à União Económica e Monetária do Oeste Africano da África Ocidental (UEMOA), adotando o franco CFA como moeda. Mas a realidade é que os intervenientes guineenses não estavam preparados para a competitividade da integração e também não souberam aproveitar a janela que se abria para um maior controlo do déficit, um crescimento financeiro ou uma participação maior na economia global. A disciplina financeira exigida pela comunidade acabou por funcionar como mais um revés ao desenvolvimento do país, traduzindo-se na falência de famílias e instituições.

 

O PRESENTE SÓ COM PASSADO

Há chuvas que o meu povo não canta
Há chuvas que o meu povo não ri

Perdeu a alma na parede alta do macaréu

Fala calado e canta magoado

Vinga-se no tambor
na palma e no caju
mas o ritmo não sai

Dobra-se sob o sikó
como o guerreiro vergado
cala o sofrimento no peito

O meu povo chora no canto
canta no choro
e fala na garganta do bombolon

 

Estes versos fazem parte do livro Noites de insônia na terra adormecida de Tony Tcheka. Nele, o sentimento de luta da população guineense ganha dimensão e é um reflexo poetizado da vida desta sociedade. As sucessivas vivências de tragédias, sejam estas anteriores ou posteriores à independência, revelam um estado de luto constante. As novas gerações do país, que cresceram com transformações secundadas no ideal de abertura política e democrática, esbateram-se também noutra nova e contínua crise que é a de um Estado falido. Uma insuficiência que se vê refletida na falta de meios para a educação das crianças, na escassez de oportunidades para a formação e empregabilidade dos jovens - até dos mais qualificados que na melhor das hipóteses conseguem virar-se para o voluntariado em ONGD’s locais ou organizações internacionais estabelecidas no país.

Ao observar o atual contexto da África Ocidental onde se insere a Guiné-Bissau, não pude deixar de encontrar algumas semelhanças na dependência económica latente no continente asiático, assim como noutras geografias do mundo. Quer na exportação de matéria prima, quer na importação de bens alimentares e turismo, quer na ajuda pública ao desenvolvimento. O impacto da Covid-19 só veio acentuar a problemática destas dependências. Uma das situações mais preocupantes é vivida pela Nigéria que representa o motor económico da África Ocidental - o seu PIB equivale a dois terços do total da CEDEAO.  E é altamente dependente da exportação do petróleo. O encerramento forçado das fronteiras e a paralisação, provocou uma queda abrupta nas receitas que adensa as dificuldades de várias camadas da população dos países desta região. Outra realidade extremamente preocupante é o facto de o limite económico do continente evidenciar o enfraquecimento das possibilidades de mobilização para a geração de emprego e circulação de capitais. Há uma dependência preocupante da China e Europa que ultrapassam em larga escala os 20% do PIB. Todos estes países ficaram ainda mais expostos, sobretudo em relação aos bens alimentares.

A Guiné Bissau é um caso incompreensível neste aspeto. Tem sete meses por ano de chuva, uma terra extraordinariamente propícia à agricultura e a disponibilidade de mão de obra jovem. Recursos desperdiçados de forma completa, importando mais de 90% de arroz do sudoeste asiático, quando também é a base de alimentação do país de norte a sul.

 

UM FUTURO POLÍTICO ETERNAMENTE ADIADO?

Na procura constante de um futuro melhor que fuja do flagelo do presente e do passado, toda esta região da África Subsaariana e a Guiné Bissau em particular, devem procurar requalificar as instituições no sentido democrático. Combatendo a violência e corrupção latentes. Adotando um quadro fiscal mais atrativo para as pequenas e médias empresas. A única forma que resta de promover a economia inclusiva e os empregos sustentáveis. Para que isso seja uma realidade viabilizada é preciso uma liderança diferente das que têm existido, com visão e elevado nível de cultura democrática. Domingos Simões Pereira, presidente do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo-Verde (PAIGC), mantém-se como uma solução neste retrato e disposto a encarar esta tarefa herculana e corajosa. No entanto, foi derrotado nas presidenciais em novembro do ano passado pelo atual presidente do país, Umaro Sissoco Embaló. Alguém cujos apelos religiosos e tribais durante a campanha, acenderam a divisão entre muçulmanos e não muçulmanos e o conflito entre etnias. Apesar de tudo, o país sempre fora poupado a estes confrontos étnicos. Os resultados e desenlace das eleições viveram de uma contestação ruidosa e demorada, mas após validação da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), viriam a ser reconhecidas. O próprio Secretário geral das Nações Unidas, António Guterres, emitiu um comunicado nesse dia referindo que seguia o caso com preocupação, mas que remetia a decisão para os órgãos competentes.   

De um país que ainda depende tanto das lideranças políticas, que depende de forma completa de um Estado minimamente funcional e que teima em aparecer, nunca é demais referir que qualquer primeiro ministro, presidente ou líder da oposição tem a sua cabeça a prémio. Literalmente. Assim nos dizem os últimos vinte anos e os jogos entre militares de toda esta região da África Subsaariana. Suplantada algum dia esta fragilidade, pode finalmente procurar-se uma maior soberania política, económica e cultural. Uma que se consiga estabelecer gradualmente para lá da elevadíssima dívida externa e que faz a Guiné-Bissau depender do apoio internacional há largos anos. Mesmo que noutra escala, aqui não difere muito de Portugal e de outros países europeus em relação à União Europeia.

A CEDEAO é o único alicerce visível que pode aspirar sustentar esta transformação da Guiné-Bissau e de outros países da região. Mas deixa muito a desejar e parece agir mais em prol de lideranças momentâneas, servindo as conjunturas de interesses dúbios. Bissau é visto como uma anomalia em termos geopolíticos. Uma espécie de enclave lusófono no meio de uma região de influência francófona, com uma constituição semipresidencialista que é decalcada da portuguesa, enquanto as de os outros regimes da região são presidencialistas como a francesa.

O reconhecimento da vitória de Embaló a 22 de abril de 2020 por parte da CEDEAO num comunicado em que deixa referido que “face ao atual bloqueio e após uma análise profunda à situação política do país, os Chefes de Estado e governo decidiram reconhecer a vitória de Umaro Sissoco Embaló na segunda volta das eleições presidenciais de 29 de dezembro”, colocou a descoberto o pior do seu comprometimento em relação a esta realidade e aos interesses instalados na região. Reconheceram um Presidente da República quando ainda havia um recurso de contencioso por decidir no Supremo Tribunal de Justiça guineense.

Para além de Domingos Simões Pereira, várias organizações da sociedade civil denunciaram as ligações destes novos protagonistas ao narcotráfico, com contínuas ameaças à liberdade de expressão e de imprensa. Num país com as fragilidades da Guiné Bissau e com uma conjugação de fatores que os empurrou para uma instabilidade política e social sem fim à vista, a própria transformação da CEDEAO é indispensável. Paralelamente, o agravamento pela disseminação da Covid-19 e os níveis da sua dívida externa farão com que o país precise como nunca de outros parceiros para o desenvolvimento. Entre estes parceiros, a União Europeia, Nações Unidas, o Banco Africano de Desenvolvimento, Banco Mundial, a União Económica Monetária Internacional e a CPLP. Só com uma vontade conjunta destes organismos, será possível exponenciar todo o potencial da Guiné Bissau.

Não há caminho sem esse apoio transversal e constante. Tal como não há nenhum futuro político sem uma nova CEDEAO. Hoje, é sempre subjetivo falar em Estados falhados, a expressão utilizada para estes, nas relações internacionais. Todavia, uma coisa é certa, aplicada a análise à CEDEAO e aos seus objetivos ou propósitos multilaterais, apercebemo-nos que também esta organização falha em grande parte na sua assistência à Guiné-Bissau.

É comum ouvir ecoar o som do balafon ou da kora a partir das tabancas de Bafatá, Tabatô até ao Burkina-Faso. Obedecem sempre a uma afinação diferente da maioria dos instrumentos e vivem de variações distintas um pouco por toda a África ocidental. Mas é na conjugação e harmonia destas variações que se assiste a espetáculos verdadeiramente inspiradores com artistas guineenses, senegaleses e malieenses a tocarem de forma coordenada. Talvez fosse altura de convocar os políticos e intervenientes na Guiné-Bissau a observarem melhor a musicalidade da região através destes instrumentos e intérpretes e quiçá, possam reter alguma inspiração.      

 

Gonçalo Ribeiro Telles, Consultor de Comunicação e Analista Político

Este artigo foi originalmente publicado na revista Brotéria, vol 191-4, outubro 2020, tendo sido aqui reproduzido com autorização do autor.