Lamento vir perturbar-vos a rentrée, os dramas das lojas do cidadão, das lanchas da GNR encalhadas em Carcavelos, e dos cartões amarelos de Cristiano Ronaldo.
No passado dia um de Setembro, uma mudança de fase ocorreu na tremenda guerra civil que grassa na Etiópia. O presidente do estado regional Amhara declarou oficialmente o recrutamento dos jovens a partir dos 13 anos (sim, 13 anos – não é uma gralha do jornal), para lutar contra o exército da Frente de Libertação da região vizinha do Tigré, que lançou em Julho um movimento de cerco à região Amhara e um ataque na direcção da capital do país, Adis Abeba. Enquanto por aqui nos queixávamos do verão pouco cálido e do incómodo das máscaras faciais, um sem número de batalhas sangrentas dilacerava o norte da Etiópia. Esta ofensiva militar dos rebeldes tigrinos foi lançada após o humilhante desbaratamento do exército do governo federal às mãos dos rebeldes, em início de Junho, num súbito e devastador contra-ataque que interrompeu o curso de oito meses de massacres e violações em massa perpetrados pelos militares e milícias etíopes e eritreias sobre a população do Tigré.
Incapaz de suster o ataque tigrino, o governo federal apelou às regiões para que recrutassem centenas de milhares de jovens e os jogassem praticamente sem treino contra as balas inimigas nas várias frentes de batalha. O resultado tem sido um morticínio não reportado porque as cadeias de televisão internacionais se encontram impedidas de filmar o horror. Nenhum dos beligerantes pode hoje alegar inocência perante a evidência de massacres, violações, e assaltos à ajuda humanitária internacional. Enquanto os rebeldes avançam, o governo etíope lança-se na compra apressada de armamento e munições junto de velhos e novos parceiros. Na impossibilidade de fazer cumprir acordos de vendas de armas com os países ocidentais, apelou a russos, iranianos, azerbaijanos e sobretudo turcos, esperando que o uso de enxames de drones letais possa alterar o destino de uma guerra que parece não poder parar antes da derrota total do adversário.
Nem a União Africana nem o IGAD têm instrumentos diplomáticos para encontrar soluções mediadas para o conflito. E o Conselho de Segurança das Nações Unidas encontra-se de tal maneira dividido que nem um projecto de resolução chega a tomar forma. Os Estados Unidos, tradicional aliado da Etiópia, deixaram de ter capacidade de pressão desde que se posicionaram do lado egípcio no surdo conflito regional em torno da barragem etíope no Nilo Azul, presentemente em curso de enchimento. O colapso afegão teve como efeito imediato um pusilânime retraimento da administração Biden no que toca ao Corno de África, no que é acompanhado — obedientemente — pela União Europeia. Até onde a Turquia puxará a corda, enviando operadores de drones para a Etiópia, é assunto que as próximas semanas poderão vir a esclarecer. Para já, esta influente presença no Corno de África é motivo de regozijo para Erdogan, averbando vitórias importantes sobre egípcios e árabes.
A guerra civil foi internacionalizada no momento em que o exército eritreu entrou secretamente em solo etíope, a 3 de Novembro último. Neste momento, ameaça a fragilíssima estabilidade do Sudão, da Somália e do Djibuti. A intervenção indirecta de turcos, azerbaijanos e russos aumenta exponencialmente a espiral de volubilidade geostratégica em torno da margem ocidental do principal canal de circulação do comércio internacional que é o Mar Vermelho. Os desafios são importantes e os europeus — e por maioria de razão, os portugueses — enfiam inconvenientemente a cabeça da areia.
A evidência dos massacres e das violações em massa no norte da Etiópia está documentada. As suspeitas de acção genocidária por parte dos exércitos e milícias etíopes e eritreias amontoam-se — a crueza das directivas dos comandos é arrepiante: exterminar quem urina contra a parede (matar os homens) e eliminar a semente nas mulheres (através da violação). Os crimes de uns são justificados pelos crimes anteriores dos outros, numa voragem suicidária. Mas a um de Setembro, uma nova página foi virada: se antes, quem queria saber sabia que todas as forças militares usam jovens e crianças na guerra, agora este nefando crime foi oficialmente admitido. Um leitor português não fará nada porque não pode. Mas um euro-deputado ou um governante podem fazer a diferença. Infelizmente, em Portugal a ideia de que um cidadão eleitor pode pressionar o seu representante eleito na Assembleia da República ou no Parlamento Europeu não chega sequer a ser uma ficção.
Se eu venho incomodar-vos a rentrée, é talvez por egoísmo. Silenciando-me, sinto-me cúmplice de um imenso crime. Falando dele, imagino pelo menos que estou a lançar um pouco desta pesada responsabilidade sobre os ombros do eventual leitor.
Artigo originalmente publicado no Público, a 4 de setembro de 2021.