Com o fim das chuvas em Tigré, que tanta falta faziam às devastadas colheitas desta região árida, inóspita e montanhosa, veio o escalar da guerra. Após quase um ano de limpeza étnica, massacres de parte a parte e violações em massa, militares e milícias amara lançaram uma gigantesca ofensiva contra os rebeldes da Frente de Libertação do Povo Tigré (TPLF, na sigla inglesa), tentando obter uma vitória decisiva após a vergonha de serem escorraçados da capital de Tigré, Mek’ele. Marcharam às ordens do primeiro-ministro Abiy Ahmed, em tempos laureado com um prémio Nobel da Paz, avançando sob cobertura de tanques, artilharia e caças, apoiados por um enxame de drones chineses, iranianos e turcos, que esmagou posições tigrínias a partir do ar. Foram apanhados pelo meio uns 400 mil civis, que vivem à beira da fome devido ao conflito, com o Governo de Abiy a bloquear o acesso de ajuda humanitária à região e mais de dois milhões deslocados, mostram os dados das Nações Unidas.
A escala da tragédia é difícil de imaginar. Mas não estranhe se não ouviu falar do assunto. A sanguinária guerra em Tigré, eclodida enquanto Donald Trump e Joe Biden disputavam a Casa Branca, em novembro, há muito – talvez nunca – que não fez manchetes. O mundo limita-se a olhar para o lado, como quem não vê que este país se está a devorar a si mesmo, queixa-se Manuel João Ramos ao i. “É um assunto que não interessa a muitos europeus, até ao momento em que os refugiados começarem a chegar a Tripoli ou Bengazi”, salienta o antropólogo do Centro de Estudos Internacionais do ISC-TE (CEI-IUL), que se especializou na região do Corno de África.
“Agora, que pessoas morram aos milhares, que sejam violadas aos milhares, que sejam queimadas vivas, o que é que isso importa? Ou que haja um nível de ódio entre regiões que se aproxima da mentalidade do genocídio? Tudo isso está lá”, continua Ramos, num tom profundamente exasperado. “É só o segundo país mais populoso de África, numa das regiões mais estrategicamente sensíveis do mundo”, ironiza. “Mas pronto, parece que não é um problema nosso”.
MOMENTO DA VERDADE Há muito que se esperava uma ofensiva das forças federais etíope, aproveitando o fim da época das chuvas e das eleições, nas quais o partido de Abiy obteve uma maioria esmagadora, com 410 dos 436 deputados, num ato eleitoral marcado por boicotes da oposição, alegações de fraude, e onde um quinto dos etíopes – os habitantes de Tigré – não puderam participar, devido à guerra civil. A ofensiva começou uns dias depois da tomada de posse de Abiy, numa cerimónia em que compareceram somente três chefes de Estado africanos, da Nigéria, Senegal e Somália, notando-se um certo isolamento, enquanto os Estados Unidos ponderavam impor sanções ao Governo etíope, por causa da guerra em Tigré. Umas semanas antes, o primeiro-ministro apelara a que todos os etíopes “capazes” se voluntariassem para combater, recrutando dezenas de milhares de jovens, atirando-os para a linha da frente com quase nenhum treino, prometendo-lhes que se livrariam dos rebeldes “de uma vez por todas”, avançou a Associated Press.
“O inimigo tem-se preparado há meses, e nós também”, notou o general Tsadkan Gebretensae, a mente por trás da estratégia do TPLP. Este estudante de biologia transformado em guerrilheiro, nos anos 1970, montou um exército do nada e comandou a ofensiva que conquistou Addis Ababa ao regime comunista do Derg. Depois tornou-se chefe do Estado Maior das Forças Armadas, liderando-as durante a brutal guerra com a Eritreia (1998-2000), mantendo-se uma figura destacada até colidir com Abiy. A experiência bélica de tigrínios como Gebretensae, que dominaram com mão de ferro o Estado etíope durante décadas, é vista como uma das chaves do sucesso desta insurgência do TPLF.
Só o tempo dirá se isso, mais o conhecimento profundo que têm do terreno, chegará para enfrentar a ofensiva das forças federais. Há relatos de que combatentes do TPLF tiveram de recorrer a atirar colmeias – uma tática de guerra ancestral na região, conhecida pela apicultura – contra colunas de militares, conseguindo desbaratá-los. Já as forças federais começaram a colocar no campo de batalha os seus próprios enxames, só que de drones, que se suspeita terem sido adquiridos sobretudo através dos Emirados Árabes Unidos (EAU), o grande aliado de Abiy no palco internacional. Só nos últimos dois meses, quase 50 voos suspeitos de trazer armamento como drones, vindos dos EAU, aterraram em bases militares etíopes, bem como seis voos vindos do Irão, tendo havido outros voos vindos da China, através do Paquistão, seu grande aliado, lê-se no Orix, dedicado a vigiar o tráfego aéreo mundial.
Seja como for, o momento da verdade pode estar próximo. “Não creio que esta vá ser uma luta prolongada”, salientou o general Gebretensae, ao New York Times, esta terça-feira. “É uma questão de dias, mais provavelmente de semanas”.
ÓDIO Se a guerra civil na Etiópia começou sendo apresentada pelo Governo de Abiy com uma espécie de operação de segurança pública, para rápida e indolormente derrubar o executivo estadual do TPLF, após este insistir em levar a cabo eleições regionais – tinham sido adiadas por Abiy, a pretexto da pandemia – e atacar bases militares, rapidamente se tornou num conflito de guerrilha, com as forças tigrínias a refugiar-se nas montanhas, escalando para a guerra total quando regressaram às suas cidades, em junho, avançando pela vizinha região de Amara a dentro, a sul.
Aqui, entra a disputa pelas terras férteis na fronteira entre estes dois estados, os ódios começaram a ferver. As forças tigrínias acusam as milícias amaras dos piores abusos cometidos no conflito – a par apenas das tropas da vizinha Eritreia, no norte, um país que só reatou relações com a Etiópia com Abiy, aliando-se a este – e o TPLF não se coibiu de massacrar populações quando entrou em território amara, avançou a France Press.
É um ódio que se sente em todo o país. “Deixei de falar com muitos amigos amaras”, contara um médico tigrínio, residente na capital, no início da guerra civil. Mas já antes não era uma relação fácil, há uma rivalidade ancestral entre tigrínios e amaras, desde os tempos em que imperadores amaras governavam a Etiópia.
“Contaram-lhes histórias diferentes quando cresciam, que eles eram o povo dos reis e das rainhas, que outros eram escravos”, queixou-se este tigrínio, pedindo anonimato ao Nascer do SOL, numa altura em que gente da sua etnia era perseguida. As declarações recentes de Abiy, pedindo aos etíopes que sejam “os olhos e orelhas do país, de maneira a detetar e expôr espiões e agentes”, não terá ajudado a acalmar esses receios. “Eles querem uma Etiópia monolítica, que só fale amárico”, acusou o médico.
O cisma é tal que se estendeu à própria Igreja Ortodoxa etíope, que congrega 43% da população, numa terra conhecida pelas suas igrejas cavadas na rocha, lar da lendária rainha de Sabá, onde está guardada a própria Arca da Aliança, acreditam os crentes. Líderes religiosos ortodoxos acusaram o Governo de intenção genocida, enquanto outros até se juntaram ao esforço de guerra contra os rebeldes tigrínios. “Quando vi o país colapsar... E os padres a serem mortos, juntei-me às forças de defesa”, explicou Gebremariam Aderaw, um monge amara, à BBC. “Luto com ambos, com a oração e a bala”.
Manuel João Ramos, Professor no ISTCE-IUL, Especialista na Etiópia e região do Corno de África, Membro do Clube de Lisboa
Artigo originalmente publicado no Jornal i, a 14.10.2021, sendo aqui reproduzido com autorização do autor.