Que mediador imagina com possibilidades de garantir o fim da guerra na Ucrânia?
Creio que um compromisso é ainda muito difícil, as partes têm posições de partida muito distantes, a guerra continua e não é claro que se tenha chegado a um impasse militar, sendo que o conflito inevitavelmente aumenta a tensão e desconfiança entre as partes. Um avanço negocial significativo seria sinal de que as coisas estão a correr ainda pior para a Rússia do que parece. Creio que a Turquia pode ser um facilitador, tem interesse em pôr fim ao conflito na sua vizinhança próxima, do outro lado do Mar Negro, e Ancara tem apostado em reforçar as suas relações com Moscovo e Kiev nos últimos anos. Porém, não tem grande influência sobre qualquer delas. Creio que teria outra força uma mediação combinada da China, da França e Alemanha, que poderemos ter visto esboçada na recente cimeira virtual entre o presidente Xi, o presidente Macron e o chanceler Scholz, eventualmente envolvendo ainda os EUA. A Rússia é muito sensível ao reconhecimento do seu estatuto de grande potência. A China é neste momento a única boia de salvação para a economia russa, o que coloca o Kremlin numa posição de grande dependência. O Ocidente tem a arma das sanções a Moscovo e do apoio militar e diplomático a Kiev. Confiar a mediação apenas a Pequim, que apostou numa nova parceria estratégica com Moscovo, não será avisado, pois poderia colocar a Ucrânia numa posição difícil. Em última análise, porém, e contrariando as leituras simplistas que fazem dos EUA o grande manipulador da política internacional, um acordo deste tipo depende, sempre, essencialmente da vontade das partes, neste caso a Rússia e a Ucrânia.
Haverá possibilidade de uma solução que salve a face de Putin e simultaneamente permita a Zelensky manter a soberania da Ucrânia?
Essa é a grande questão. O dilema do Ocidente é que tem de fazer pagar um preço muito elevado à Rússia pela invasão, mas sem a encurralar num perigoso beco sem saída. Não tenho dúvidas de que Putin fez uma jogada de alto risco para tentar tornar a Ucrânia num país vassalo, um satélite no modelo da Bielorrússia. Apesar de tudo Putin tem uma poderosa máquina de repressão e de desinformação, pelo que, se o Kremlin decidir por uma saída negociada pode usar essa máquina para declarar vitória e evitar contestação. O que Putin exige atualmente à Ucrânia é o reconhecimento da anexação da Crimeia, da perda do Donbass e, sobretudo, uma cláusula de neutralidade na Constituição que a exclua não apenas da NATO, mas também da UE. Sem falarmos da integridade territorial perdida, não há quaisquer contrapartidas russas, nomeadamente, não há a oferta de quaisquer sólidas garantias de segurança. Sobretudo, se a Rússia continuar a defender que esta neutralização implica também a impossibilidade da Ucrânia beneficiar de apoio militar do Ocidente, que como estamos a ver é vital para a sua capacidade de resistência à invasão. Uma solução razoável seria adiar sine die qualquer discussão sobre o statu quo na Crimeia, apontar para um grau de autonomia reforçada do Donbass, com a presença de capacetes azuis, e a Ucrânia comprometer-se em não aderir à NATO, mas em troca de sólidas garantias de segurança e de relações reforçadas com a UE. Infelizmente, depois de uma invasão nesta escala, é difícil imaginar que um acordo desse tipo fosse aceitável para as partes. O fundamental é que não se pode repetir Munique ou Ialta, qualquer acordo tem de ser aceitável para a Ucrânia.
Com esta exibição de força, a Rússia assegurou que o alargamento da NATO a leste terminou?
Pode ter o efeito contrário. Vimos que, pela primeira vez na história, uma sondagem mostrou a maioria dos finlandeses a defender que o seu país deve aderir à NATO. Uma evolução semelhante se passa na Suécia. Relativamente à Geórgia (tal como à Ucrânia) isso não tem estado realmente em cima da mesa, por boas razões de prudência. Resta ainda a situação complicada da Moldávia, que poder ser um próximo alvo da Rússia. É demasiado cedo para dar uma resposta taxativa.
É o risco de guerra nuclear que impede a guerra aberta entre a NATO e a Rússia?
É um fator muito importante. As armas nucleares têm os seus riscos, mas são um poderoso fator de dissuasão de conflitos armados em grande escala entre grandes potências. Por isso, os países da NATO deixaram sempre claro que não iriam colocar tropas na Ucrânia, e que não se queriam envolver num conflito direto com a Rússia. A rejeição, para já, de uma zona de exclusão aérea também resulta da mesma preocupação, pois implicaria abater aviões russos, o que poderia levar a uma escalada descontrolada.
Quem sairá mais reforçada desta crise, a NATO ou a UE?
Creio que ambas sairão reforçadas, bem como a cooperação entre elas, embora, a utilidade da NATO seja aquela que fica mais evidente com uma crise deste tipo. Espero, em todo o caso, que tenha acabado o tempo das ambiguidades dos EUA face à defesa europeia, ou da França face à NATO. A Aliança Atlântica é claramente neste momento a melhor garantia de segurança e de liberdade dos europeus, graças a uma estrutura militar muito robusta. A UE mostrou ser crucial, por exemplo, no campo das sanções económicas, o que prova que o seu peso económico não é irrelevante. E tem um papel importante na resposta a toda a dimensão não-convencional dos conflitos híbridos, bem como no investimento coordenado em novas tecnologias da defesa. É claro que o que a UE já vinha fazendo no campo da defesa tem de ser fortemente reforçado e acelerado. A Europa não pode ficar desarmada num mundo cada vez mais dominado por crises militarizadas e grandes potências revisionistas que cada vez investem mais em defesa e assumem posturas mais agressivas. É previsível uma nova declaração conjunta UE-NATO a clarificar e reforçar os termos da sua cooperação nestes novos tempos.
Como avalia o desempenho de Portugal nesta crise entre o Ocidente e a Rússia?
Creio que Portugal se manteve fiel aos pilares da sua política externa nas últimas décadas. Sem fechar a porta ao diálogo com a Rússia até ao momento da invasão, deixou, no entanto, sempre claro que estava do lado de uma frente unida da União Europeia e da Aliança Atlântica na defesa dos valores democráticos e dos interesses europeus. Para um país com a dimensão de Portugal um sólido sistema de alianças e uma forte garantia de defesa mútua é indispensável num mundo que se tem tornado mais imprevisível, mais perigoso e mais violento.
Esta entrevista, realizada por Leonídio Paulo Ferreira a Bruno Cardoso Reis, foi orginalmente publicada no Diário de Notícias a 11.03.2022.
Leonídio Paulo Ferreira, Diretor Adjunto do Diário de Notícias. Membro do Clubde de Lisboa.
Bruno Cardoso Reis, Subdiretor do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE. Membro do Clubde de Lisboa.