Alimentação e Guerra

Esta brief analisa a relação entre alimentação e conflitos violentos e sobre os impactos da guerra na Ucrânia na fome e na segurança alimentar no mundo.

 

Interligação entre alimentação e conflitos violentos

 

Os conflitos violentos são um fator preponderante de agravamento da pobreza e da insegurança alimentar no mundo, causando diretamente perdas de vidas, deslocamento forçado das populações, perda de meios de subsistência, perdas de terra e de recursos naturais, disrupção no comércio e nas cadeias de abastecimento alimentar, e afetando indiretamente as perspetivas futuras de desenvolvimento a todos os níveis.

A fome e a privação de comida são igualmente, há muitos anos, uma arma de guerra, nos mais variados contextos e latitudes. O Conselho de Segurança das Nações Unidas reconheceu os conflitos violentos como causa fundamental das crises alimentares e da fome, em maio de 2018, tipificando também a privação de alimentos a civis como um crime de guerra. Este aspeto contribuiu também para atribuição do Nobel da Paz ao Programa Alimentar Mundial (PAM) das Nações Unidas, em 2020, reconhecendo a importância da ajuda alimentar para a prossecução da paz.

Com a existência de situações de crise e de fragilidade dos Estados mais prolongadas e com a proliferação de crises humanitárias, as crises alimentares tendem a tornar-se mais complexas, demoradas e difíceis de reverter. Os conflitos violentos têm estado na base das maiores crises alimentares nos últimos anos, como ressalta dos exemplos evidentes do Afeganistão, da Síria, do Iémen e da Somália, mas também noutros países da África Subsaariana, onde as tensões e instabilidade têm afetado grandemente o acesso regular a alimentos seguros, nutritivos e suficientes. Por outro lado, a persistência da insegurança alimentar contribui também para tensões sociais e conflitos, como tem sido verificado de forma mais aguda em países da zona do Sahel. O aumento do preço dos bens alimentares no final da década de 2000 foi, por exemplo, um fator de descontentamento e tumultos sociais no Egipto ou na Tunísia, contribuindo em vários países do Norte de África para a chamada Primavera Árabe.

Em muitos contextos, os conflitos juntam-se a outros fatores de crise, como os que dizem respeito ao ambiente (alterações climáticas, degradação dos solos, fenómenos de seca ou eventos meteorológicos extremos), à economia (particularmente em países com economias débeis e pouco diversificadas, com pouca capacidade produtiva e altos níveis de pobreza) e ao desenvolvimento humano (na medida em que a insegurança alimentar interage com a saúde, com a educação e com capacidade de as pessoas desenvolverem o seu pleno potencial) - bem como, no plano internacional, com os desequilíbrios e insustentabilidades dos sistemas alimentares mundiais.

A nível mundial, a tendência nos últimos anos é de agravamento dos níveis de fome e insegurança alimentar e de afastamento relativamente ao cumprimento do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 2 da Agenda 2030. Os efeitos cumulativos da pandemia representaram um fator determinante de agravamento da insegurança alimentar, com vários dos países mais pobres a sofrerem choques múltiplos e interligados, incluindo como resultado de conflitos - o Iémen, a República Democrática do Congo, o norte da Nigéria e da Etiópia, o Sudão do Sul ou o Burkina Faso são alguns destes casos.

Perante este cenário de aumento das necessidades de apoio, muitos destes países são também crises esquecidas, suscitando menor atenção da solidariedade internacional; apenas 3% do apelo das Nações Unidas para assistência humanitária urgente à Etiópia, Somália e Sudão do Sul estava financiado, em março de 2022. Com a guerra na Ucrânia, ao financiamento insuficiente junta-se o aumento dos custos das operações para ajuda alimentar e assistência humanitária, dado o aumento dos preços dos bens alimentares e de energia. Em 2021, a Ucrânia era o principal fornecedor de alimentos para o Programa Alimentar Mundial.

 

A guerra na Ucrânia e a insegurança alimentar: a tempestade perfeita

 

A invasão da Ucrânia pela Rússia e a consequente guerra tem tido consequências graves na insegurança alimentar no mundo, particularmente para países onde a situação já era frágil ou mesmo insustentável. Desde logo, porque todos os fatores de crise que já se vinham a agravar e/ou que foram espoletados pela pandemia foram ainda mais reforçados: subida dos preços internacionais dos produtos alimentares de base e nos fatores de produção agrícola, disrupção nas cadeias de abastecimento agrícola e alimentar, aumento dos custos de transporte e de energia, aumento do protecionismo e das barreiras comerciais, e outros efeitos de choque nos mercados internacionais.

O preço dos bens alimentares tem registado uma subida exponencial desde a invasão na Ucrânia, tendo o índice global de preços dos alimentos (FAO) atingido, em março de 2022, o valor mais elevado desde que foi criado, em 1990. As Nações Unidas estimam que, em sessenta anos, nunca o acesso a alimentos básicos foi tão dispendioso em termos reais. Esta fatura é mais pesada para os países mais pobres, onde os custos com a alimentação representam uma fatia maior dos orçamentos das famílias e do próprio Estado, e onde existem menores capacidades internas e recursos financeiros para corresponder a esses aumentos. Além disso, pela natureza das suas economias, os países africanos em especial têm grande exposição e vulnerabilidade a choques nos mercados internacionais.

A subida de preços está interligada com a menor disponibilidade destes bens alimentares no mercado mundial. Em boa parte, tal é resultado direto da guerra, dado a Ucrânia e a Rússia fornecerem quase 30% do trigo e da cevada em termos globais, assim como 1/5 do milho (19%) e 80% do óleo de girassol de todo o mundo. Antes da guerra (2020), e relativamente apenas ao trigo, a Rússia e a Ucrânia eram respetivamente o 3º e 8º maiores produtores mundiais (lista que é liderada pela China e pela Índia), enquanto a Rússia era o maior exportador e a Ucrânia ocupava a 5ª posição, quer em quantidade quer em valor das exportações.

É importante lembrar que os cereais são não apenas a base da alimentação humana mas também da alimentação animal, tendo portanto um efeito de cadeia em outros produtos alimentares (como a carne ou o leite), para além de serem matéria-prima para produção de biocombustíveis. A Rússia é ainda o maior exportador mundial de fertilizantes, sendo este um dos fatores explicativos da posição de não condenação da Rússia assumida pelo Brasil, o maior exportador mundial de soja, usada maioritariamente na alimentação animal (através das rações).

Na Ucrânia, a destruição física e do tecido económico e social, causados pela guerra, comprometeu as colheitas deste ano e afetará substancialmente as campanhas agrícolas dos próximos anos. Mesmo depois do fim do conflito, a recuperação da situação de escassez e o restabelecimento dos sistemas produtivos serão lentos, uma vez que abrangem questões que vão desde a disponibilidade de sementes, à segurança dos terrenos, à existência das infraestruturas seguras e equipamentos tecnológicos, ou aos recursos humanos.

Os bloqueios dos portos do mar Negro e as sanções à Rússia também funcionam como impedimento do comércio. No caso da Rússia, o seu papel proeminente nos mercados energéticos – sendo o maior exportador mundial de gás natural e o segundo maior exportador de petróleo - contribui ainda para o aumento dos preços da energia, refletindo-se ao longo de toda a cadeia alimentar, desde a produção agrícola à distribuição e transporte.

Por outro lado, essa escassez é agravada ainda mais por medidas de “protecionismo alimentar” implementadas por muitos países, nomeadamente europeus, com a retenção de stocks internos de vários alimentos (como os cereais) a limitação das quotas de produção para os mercados internacionais e a imposição de outras restrições à exportação, para garantirem a disponibilidade de alimentos nos seus países. Há que equacionar o risco de estas medidas de emergência poderem prolongar-se no tempo e afetarem grandemente a disponibilidade de alimentos para os países mais pobres e vulneráveis a médio prazo.

O aumento dos preços dos óleos vegetais e dos cereais e a disrupção nas exportações da Rússia e da Ucrânia é tem um impacto maior em muitos países que são dependentes destas importações e que estão já em situação de insegurança alimentar. O contexto é particularmente grave em países do Norte de África e da África Oriental, onde os últimos anos têm sido marcados por maior seca. A África Oriental importa 84% do trigo que consome e depende da Rússia e da Ucrânia para 90% dessas importações, as quais foram praticamente suspensas com o conflito e sendo a produção doméstica e os stocks nacionais insuficientes para corresponder à procura. O Egito, que é o maior importador mundial de trigo e que importa a totalidade do seu óleo de girassol da Rússia e da Ucrânia, reexporta depois para os países vizinhos, que se veem agora confrontados pela escassez e aumento insuportável dos preços. No Corno de África, a crise aguda de fome devido à seca extrema é agravada pela dependência dos produtos alimentares provenientes da Rússia e da Ucrânia, sendo a situação especialmente aguda na Somália, onde décadas de instabilidade se juntam a esta tempestade perfeita.

 

Ainda vamos a tempo?

 

Numa altura em que muitos dos países com menores índices de desenvolvimento estão ainda a tentar reerguer-se dos efeitos devastadores da pandemia da COVID-19 e lidar simultaneamente com os custos históricos da sua dívida e com uma inflação crescente, a guerra na Ucrânia veio dificultar ainda mais as perspetivas de recuperação. A atenção e financiamento internacional devem ser, portanto, não apenas dirigidos à Ucrânia, que precisa urgentemente desse apoio e deve recebê-lo, mas também aos efeitos multiplicadores e indiretos da guerra, em países já afetados por uma confluência de crises e pela insegurança alimentar.

Os efeitos da guerra a médio prazo irão contribuir para uma reconfiguração geoeconómica dos mercados alimentares mundiais. O aumento da produção destes bens alimentares noutras zonas do globo - nomeadamente na América do Sul, na Europa, ou nos Estados Unidos, como já está a ser equacionado - poderá contribuir para colmatar a escassez, mas beneficiará principalmente aqueles que têm melhores condições e recursos financeiros para os adquirir.

Significa isto que, por um lado, é preciso contrariar as tendências protecionistas e agir na defesa de um sistema de comércio mais livre e justo, assente em regras que não penalizem ainda mais os que já estão “a ser deixados para trás”. É preciso resolver os constrangimentos logísticos, libertar stocks e levantar as restrições à exportação, bem como apostar na regulação dos mercados. A União Europeia tem um papel importante nos sistemas alimentares no mundo e a sua resposta deve ir para além das cadeias de abastecimento ou das políticas comerciais, através da combinação de um conjunto de políticas que abranja o financiamento, o desenvolvimento, a resposta de emergência,  os impactos na segurança, etc.

Significa também, por outro lado, que é necessário preservar o espaço da solidariedade internacional, direcionando apoios para os mais afetados e fazendo os possíveis para reverter o desastre humanitário em curso em vários locais. A ajuda à Ucrânia deve provir de compromissos e fundos adicionais, não representando um desvio de fundos destinados à ajuda ao desenvolvimento para outros países em situação de crise e de conflito. As instituições internacionais e os governos devem contribuir para reforçar a cooperação para o desenvolvimento e a proteção social pela via da ajuda alimentar e financeira. A disponibilização de fundos, incluindo pelas instituições financeiras internacionais, deve corresponder à exigência da atual emergência alimentar, nomeadamente não contribuindo para o agravamento insustentável da dívida dos países mais afetados.

Na tomada de medidas para o futuro, é importante assegurar que os pacotes de recuperação ou estímulo económico não estão assentes nos fatores que têm perpetuado as desigualdades e desequilíbrios dos sistemas agroalimentares, mas antes se focam na prevenção e na promoção da segurança alimentar e nutricional. Tendo em conta a dependência energética e alimentar atual, as respostas aos múltiplos efeitos da guerra, poderão potencialmente vir a impulsionar, também, uma transição mais rápida para energias mais limpas, para formas de produção agrícola que usem menos produtos químicos, para um investimento nas capacidades produtivas de cada país e para uma reformulação dos sistemas alimentares mundiais, no sentido de uma maior justiça e sustentabilidade.

 

 

Este texto reproduz a publicação original "Alimentação e Guerra", publicada pelo Instituto Marquês de Valle Flor, em maio de 2022, no âmbito do projeto "Our Food.Our Future".