Entrevista a Stella Ghervas, oradora na 5ª Conferência de Lisboa

"Porque não uma União de Lisboa a Vladivostok? Provavelmente não com Vladimir Putin"

Depois de ter estado em Portugal já este ano para apresentar o seu livro A Conquista da Paz, Stella Ghervas regressa para a Conferência do Clube de Lisboa, organizada sob o mote Rumo a uma Nova Ordem Mundial, que se realiza na Fundação Gulbenkian amanhã e sexta-feira. Faz uma análise da crise entre Ocidente e Rússia e da coragem precisa para a paz.

Entrevista de Leonídio Paulo Ferreira a Stella Ghervas.

 

Até que ponto foi chocante para si esta guerra na Ucrânia? Foi realmente o fim de mais de sete décadas de paz na Europa, ou as guerras da Jugoslávia, as azeri-arménias ou da Geórgia já eram sinal de que a paz estava em perigo?
Foi uma mágoa. Quando recebi a notícia da agressão russa, acabava de voltar de uma licença de investigação para um novo livro sobre a história do Mar Negro em que estive a trabalhar primeiro nos arquivos de São Petersburgo, na Rússia, e depois de Odessa, na Ucrânia. Mas tem razão, já podíamos ver as sementes da guerra atual naqueles primeiros conflitos. O Kremlin tinha vindo a instalar um exército russo em cada um dos seus países vizinhos: Moldávia, Geórgia, Ucrânia. É difícil não pensar que isso fazia parte de um objetivo de longo prazo de restabelecer as fronteiras do império soviético.

Imagina ser possível uma guerra generalizada na Europa por causa da agressão russa à Ucrânia ou os mecanismos para a evitar funcionarão?
Isso dependerá, infelizmente, das inclinações de muito poucos líderes políticos. No meu livro À Conquista da Paz, agora traduzido para português (Edições Desassossego, 2022), mostro como as diferentes mentalidades de líderes políticos em diferentes momentos impediram ou favoreceram a eclosão de uma guerra. No inverno de 1814- 1815, o czar russo Alexandre I preferiu renunciar para evitar, depois de Napoleão, uma nova guerra com outras potências europeias por causa da Polónia. Em 1945, Joseph Estaline não estava na mesma disposição para o diálogo. O lema do meu livro é uma citação shakespeariana: "A paz é como uma conquista; com nobreza as duas partes se submetem, e nenhuma delas perde". Em termos simples, o único "mecanismo" conhecido para evitar a guerra é a negociação, de modo que cada lado sinta segurança suficiente para abandonar a sua hostilidade.

O medo da guerra nuclear é agora a melhor defesa contra uma guerra generalizada entre o Ocidente e a Rússia?
Esta questão é se o equilíbrio do poder militar (ou melhor, o equilíbrio do terror) é bom para a paz? A minha resposta é enfaticamente "não", porque o medo nunca foi um bom conselheiro: é, sempre, uma das principais motivações para iniciar uma guerra. Em cada caso, a ameaça pode ou não ser real, o que importa é que o mundo cuja ordem política depende constantemente do medo da destruição mútua é um sistema de guerra. E esse estado de coisas causará guerras no mundo, em vez de preveni-las, como tem acontecido quase sem interrupção, mesmo depois de 1945. Por outro lado, a paz duradoura deve basear-se na confiança mútua. Portanto, um verdadeiro sistema de paz não será estabelecido na Terra, até que os tratados de desarmamento nuclear tenham sido assinados por todos os Estados e as armas nucleares neutralizadas.

Em 1945, após a derrota da Alemanha nazi foi possível alcançar uma forma de construir relações pacíficas na Europa, mesmo com dois blocos inimigos políticos. Qual era a fórmula? Evitar a repetição dos erros de 1918-1919, no final da Primeira Guerra Mundial?
No rescaldo da Segunda Guerra Mundial, os chamados pais fundadores das comunidades europeias fizeram um grande avanço. Robert Schuman declarou em 1950: "A Europa não pode ser feita de uma só vez ou de acordo com um único plano". Em vez de um grande plano de paz (que provavelmente não teria funcionado), ele propôs um passo a passo, que mais tarde será chamado abordagem "funcional": manter o que funciona e mudar o que não funciona. A "paz" não deveria ser considerada um status quo, mas algo que deve ser alcançado e mantido. É necessário abraçar a mudança o tempo todo. Após a Segunda Guerra Mundial, essa paz foi, no entanto, limitada apenas à Europa Ocidental e este era um pequeno espaço geográfico. No mundo amplo, houve uma Guerra Fria entre os EUA e a URSS, com dois exércitos, um de cada lado da Cortina de Ferro, sempre prontos para lutar. A Alemanha foi cortada em duas por uma fronteira interna; e não esqueçamos que o exército soviético estava estacionado a apenas 700 Km de Paris. Do outro lado da divisão, havia governos fantoches e uma ocupação militar. Para os países do Leste Europeu, a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria fundem-se num único período de ocupação totalitária (1939- 1989) a que chamo "Guerra dos Cinquenta Anos".

A Europa é um continente mais belicista do que outros e as últimas décadas de paz são apenas um momento excecional?
Os europeus não são por natureza nem mais pacíficos nem mais violentos do que outros seres humanos. Descrevo, em À Conquista da Paz, uma tradição europeia de paz e pacificação desde o Iluminismo do século XVIII, que sobreviveu até hoje. De facto, um autor e diplomata francês, Abade de Saint-Pierre, publicou um livro em 1713, logo após a Guerra da Sucessão Espanhola, que afirmava que ter um equilíbrio de poder (entre duas alianças militares) não era um estado de paz, mas apenas uma "trégua armada". A Europa não conheceria a paz perpétua (nos termos de hoje "paz duradoura"), até que os seus Estados se agregassem numa federação. Ele até usou o termo "União Europeia", há três séculos! Nisso, ele foi profético: depois de isso ter finalmente acontecido, depois de 1950, a Europa conheceu um período excecional de paz interior, que se estendeu a mais e mais países.

A União Europeia é o segredo dessa paz, especialmente na Europa Ocidental, construindo uma parceria entre inimigos tradicionais como França e Alemanha?
A União Europeia é uma instituição política que tem contribuído para a paz na Europa. Mas o segredo dessa paz está, mais uma vez, na fórmula que Robert Schuman descreveu em 1950: "[A Europa] será construída por meio de conquistas concretas que primeiro criem uma solidariedade de facto. A união das nações da Europa requer a eliminação da antiga oposição da França e da Alemanha". Aqui vemos dois fundamentos de paz duradoura: a reconciliação de antigos inimigos e a criação de uma verdadeira solidariedade. Sem esses dois fatores, a "paz" só pode ser superficial e temporária. Muito claramente, ainda não houve reconciliação entre a Rússia e os seus países vizinhos após a Guerra Fria e, claro, isso impede a confiança e a solidariedade nas condições atuais.

Acredita que é possível construir algo semelhante de Lisboa a Vladivostok, uma espécie de tratado de paz pan-europeu, mesmo com Putin como líder russo? Ou a paz na Europa só retornará após a derrota russa e a mudança de liderança em Moscovo?
Sou historiadora e não tenho uma bola de cristal para prever o futuro. Mas digo: porque não uma União de Lisboa a Vladivostok? Para a segunda parte da pergunta: provavelmente não com Vladimir Putin. Ele é um homem (não muito diferente do seu colega americano Joe Biden) que passou muito tempo na Guerra Fria e que pertence a uma geração que cresceu num contexto político em que as crianças foram ensinadas a não gostar dos habitantes de um país inimigo. Acredito que a sua mente tenha sido formatada por velhos preconceitos imperialistas, e isso reflete-se no facto de ele questionar o direito da Ucrânia de ser um país soberano, por razões "históricas" questionáveis. Outros líderes russos, como o czar Alexandre I ou Mikhail Gorbachev, conseguiram romper com a sua estrutura ideológica e romper com o passado, mas são personagens de natureza muito diferente do atual presidente russo. Há poucos dias, por iniciativa do presidente francês Emmanuel Macron, realizou-se em Praga a primeira cimeira de uma Comunidade Política Europeia com 44 membros. A próxima reunião está prevista para daqui a seis meses na Moldávia. As fronteiras estão a mover-se para o leste... As coisas parecerão mais brilhantes no dia em que os imperialismos forem coisa do passado. Nesse dia, a Federação Russa será incluída num sistema pan-europeu de paz e países como a Ucrânia, a Moldávia e a Geórgia serão respeitados como Estados plenamente soberanos.

Tentar negociar a paz agora será visto como sinal de vulnerabilidade para alguém como Zelensky?
Eu não acho. Ao contrário da crença comum, a paz é para os fortes e a guerra é para os fracos. É claro que as negociações diplomáticas devem continuar, mesmo em tempos de guerra aberta.

As sanções económicas resultarão na mudança de comportamento da Rússia e na criação de condições para uma paz real?
As sanções económicas são uma ferramenta de guerra. Elas são projetadas para vencer uma guerra, mas trazer a paz é algo totalmente diferente. Além disso, a História moderna da Europa não sugere que as sanções económicas sejam particularmente eficazes contra uma potência forte. Um dos maiores fracassos de todos os tempos foi o Bloqueio Continental que Napoleão tentou contra a Grã-Bretanha. E na década de 1930, as sanções económicas da Liga das Nações contra a Itália após a agressão contra a Etiópia não foram particularmente eficazes.

Consegue imaginar a China como mediadora da paz na Europa, mesmo sabendo que os EUA olham para este país asiático como o futuro inimigo?
Acredito que respondeu à sua própria pergunta: se o governo chinês estivesse a intermediar a paz na Europa, seria uma intrusão. Seria preferível para a Europa que os europeus conseguissem resolver os seus próprios problemas sem intervenção externa.

Historicamente é muito mais difícil fazer a paz do que começar uma guerra?
Essa pergunta é como esta: "é mais fácil partir um vaso de porcelana ou consertá-lo?" Quebrar a paz é fácil: requer apenas raiva e força bruta. Restaurar a paz requer autocontrolo, diálogo, inteligência e coragem. O que mostro no meu livro é que diplomatas pacificadores às vezes são mais heroicos do que heróis de guerra.

Do seu livro À Conquista da Paz, este ano publicado em Portugal, consegue identificar uma importante lição histórica para estes dias de guerra na Europa?
Uma das lições é que somente os fortes - ou os que desejam tornar-se fortes - estabelecem alianças duradouras de paz. Seria um sinal de fraqueza para os líderes de qualquer nação moderna depositar a sua fé num exército ofensivo ou nas virtudes "pacificadoras" das ogivas nucleares como o principal garante da sua segurança nacional. A história moderna da Europa mostra que todos os Estados, sem exceção, que seguiram esse caminho de "grandeza" com ideologias militaristas e exércitos ofensivos terminaram o seu percurso na terra da decadência, seja por derrota militar ou fracasso económico. Em contraste, a grandeza política tem sido repetidamente encontrada nos laços sociais de união e prosperidade económica que só a paz duradoura pode proporcionar. O objetivo do meu livro À Conquista da Paz é lembrar a todos que a paz duradoura em toda a Europa (e no mundo) nunca é garantida. É um objetivo de longo prazo ao qual cada um de nós deve permanecer fiel e pelo qual deve trabalhar constantemente.

 

Entrevista de Leonídio Paulo Ferreira a Stella Ghervas, publicada no Diário de Notícias, 12.10.2022.

Foto: Reprodução da foto do Diário de Notícias, © Diana Quintela/ Global Imagens

Stella Ghervas é oradora na 5ª Conferência de Lisboa que decorre a 13 e 14 de outubro na Fundação Calouste Gulbenkian.