URSS e NATO chegaram a dominar 80% da economia mundial e a deter ainda mais poderio militar, mas a realidade atual é muito diferente. Juntos, China e Estados Unidos, as duas maiores potências globais, "correspondem hoje a menos de 50% do PIB mundial e do poder militar", ressalta o diplomata indiano Shivshankar Menon, e "precisam uma da outra". De passagem por Lisboa, o presidente do Centro de Estudos sobre a China da Universidade de Ashoka explora o conceito de um "mundo entre ordens" e, num tom otimista, ressalta: “Os países em declínio de ontem são os países em ascensão de amanhã”
Devo admitir que dei por mim a sorrir, não sem alguma ironia, quando uma pessoa da audiência perguntou o que é que a Índia pode ensinar a outros países sobre a convivência pacífica entre diferentes etnias e religiões…
Sim, neste momento temos os nossos próprios problemas (risos).
A começar pelo facto de o atual primeiro-ministro, Narendra Modi, estar apostado num nacionalismo religioso excludente, sob o paradigma “uma nação, uma eleição”, com tentativas de alterar a Constituição, usando o Hinduísmo para jogar com os medos das pessoas…
Penso que existe sempre esta tentação de olhar para o nacionalismo como sendo o nacionalismo europeu do século XIX, certo? Uma etnia, uma nação, uma eleição, qualquer que seja a linguagem. Mas a Índia tem uma sociedade tão plural e é um sítio tão diversificado que tentativas anteriores de centralização, de controlo, também falharam. E o facto é que a política normalmente acaba por tratar destas coisas. Neste momento, vemos que o governo depende de uma coligação e, para formar uma coligação, tens de trabalhar com outros partidos que têm interesses ligeiramente diferentes dos teus. E é dessa forma que todos os diferentes interesses são acomodados. Se nos limitássemos a ler os programas dos partidos políticos, realmente pensaríamos que a Índia está altamente polarizada, questionar-nos-íamos como é possível que alguma coisa funcione, dado que toda a gente tem ideias completamente diferentes sobre a Índia que querem construir. Mas ainda assim funciona. Quero dizer, a vida quotidiana continua, a economia está em bom estado e há hoje mais pessoas a viver uma vida melhor do que algum dia viveram. Penso que a força da Índia está no facto de ser um sistema federal. A minha mãe, que vivia no sul, costumava dizer-me “Não me interessa quem chega ao poder em Deli, porque a minha única relação com o governo central é pagar-lhes impostos sobre o rendimento, de resto dependo da minha água, tudo o resto é local”. Esse é um grande facto que as pessoas tendem a ignorar, porque toda a gente olha apenas para Deli e pensa na Índia como se fosse a Dinamarca. A médio prazo estou muito pouco preocupado com isso. Não é que eu goste de todas as ideias que [Modi] defende, é só que acho que a Índia tem uma forma de lidar com estas coisas e de dar a volta por cima. A realidade acabará por prevalecer e essa realidade é a de uma sociedade plural, diversificada e aberta, o que basicamente significa que as pessoas confiam umas nas outras e trabalham umas com as outras, de uma forma ou de outra. Já esteve na Índia, portanto sabe do que falo.
Culturalmente é uma sociedade muito acolhedora.
Sim, é uma sociedade muito mais aberta do que a maioria julga.
Pegando na ideia de que as vidas das pessoas estão melhor do que nunca...
O que também é verdade a nível global, já agora.
Certo, mas isso leva-nos a outra questão: nunca houve tanto progresso e tanta qualidade de vida, mas ao mesmo tempo as desigualdades estão a aumentar a olhos vistos.
É esse o meu ponto exatamente, é esse o real problema. É esse paradoxo que estamos todos a viver atualmente. Temos mais e mais pessoas no mundo inteiro a viver vidas mais longas, melhores, mais saudáveis e mais prósperas do que em qualquer outro momento na história da humanidade. Se olharmos para os números absolutos de pobreza, na realidade diminuíram a um tal nível que atingiram uma proporção nunca vista na História. As desigualdades, na verdade, estão quase incorporadas na humanidade desde o início, mas no início eram muito extremas, tinha-se muito pouco e até isso era tomado pelos ricos e poderosos. E, portanto, o paradoxo hoje é que temos uma situação em que as pessoas estão a viver melhor, mas se lhes perguntarmos sobre isso, dir-nos-ão que a vida é muito mais difícil hoje, que temos muito mais insegurança, que o mundo é um lugar terrível. E de onde vem esse sentimento de insegurança? Na minha opinião, vem de três coisas: da urbanização, da globalização e da tecnologia.
Pode elaborar?
A urbanização porque as desarraiga da família, do clã, da tribo, da aldeia. Todas as certezas que lhes davam um sentido de valor, de pertença, um lugar na sociedade entre os seus semelhantes, isso desapareceu. A globalização porque incentiva a urbanização e a mobilidade, porque se vai para onde estão os empregos, e os empregos deslocam-se também em função do local onde se pode produzir com menos custos e assim por diante. Passámos a fazer parte de uma cadeia de valor global e passámos a depender de outras pessoas de uma forma que não dependíamos antes, quando éramos autossuficientes numa aldeia algures. E a globalização também é uma ameaça à nossa identidade, porque agora a tecnologia permite-nos ver exatamente o que se passa no resto do mundo. Vemos estilos de vida em lugares ricos e, se estivermos num país em desenvolvimento, isso amplifica as mensagens. Quer dizer, quando alguém diz que os imigrantes estão a tomar conta de tudo e nos mostra um vídeo, só vemos o que está nesse enquadramento, e se o virmos mil vezes começamos a acreditar que corresponde à realidade. A tecnologia, de certa forma, amplificou estas mensagens e tornou as pessoas muito mais ambiciosas, muito menos felizes com o que são, onde estão. Afastou-as do que é certo e seguro e, por isso, sentem-se inseguras. E então voltam-se para um líder populista que lhes faz promessas, ou que usa o seu carisma e que usa o ultranacionalismo e a xenofobia como forma de apelo. E assim acabamos neste problema em que a globalização nos integra economicamente no mundo, mas em que estamos politicamente fragmentados como resultado dessa mesma coisa.
Mas como foi referido várias vezes nesta conferência, a ideia de uma desglobalização é uma miragem, não vamos voltar atrás.
Sim, na realidade isso não está a acontecer, porque a lógica económica continua tão forte que, se olharmos para a percentagem do comércio mundial em relação ao PIB mundial, esta continua a ser superior a 60% e tem sido assim desde 2011. Quer dizer, desceu em 2008 com a crise financeira global, mas desde 2011 tem-se mantido acima dos 60%. Vai subindo e descendo, desceu um pouco por causa da pandemia, e com isso o PIB diminui, mas a proporção do comércio mantém-se. Essa é a verdadeira medida do comércio global. Se olharmos para as cadeias de valor globais, as cadeias de valor da indústria transformadora tornaram-se mais curtas, porque estamos a fazer “friendshoring” ou "nearshoring", já não confiamos numa cadeia de abastecimento longa, queremos resiliência. Penso que a globalização está a mudar a sua natureza. A maré alta da globalização acabou, o tempo em que se ia para onde quer que fosse barato e se podia produzir onde quer que fosse... Já não se confia em toda a gente. E agora a política entrou nesse cálculo.
A sua ideia de um mundo entre ordens encaixa aqui?
Sim, politicamente também. Se olharmos para o passado, houve duas ordens, a ordem pós-II Guerra e a ordem pós-Guerra Fria, mas agora não sabemos se realmente concordamos sobre essa ordem, não sabemos realmente como definir onde estamos. Não só isso, mas a ideia de que temos de ter uma ordem para fazer as coisas bem, de que a humanidade precisa de uma ordem, é um mito. Não é, de todo, uma condição necessária para o progresso humano. Na maior parte da História, vivemos numa espécie de multiversos separados. Houve uma sinoesfera, houve uma espécie de região do Oceano Índico, havia o Médio Oriente com várias potências regionais, o Egito, o Irão, quem quer que fosse, e a Europa era um sistema multiestatal.
Mas, digamos, existe esta tendência humana para, na tentativa de ordenar as coisas, dividir o mundo entre isto e aquilo, organizá-lo mentalmente em dicotomias. Um exemplo é o facto de falarmos do chamado Sul Global como se fosse um bloco, quando na verdade é composto por países não totalmente alinhados entre si.
No que toca à ordem global, acho que nos fizeram uma lavagem ao cérebro, por causa da Guerra Fria e desta ideia de que tem de haver uma ordem. Mas também penso que faz parte da globalização do final do século XIX, início do século XX, esta é uma ideia imperial, penso que os britânicos fizeram um bom trabalho para nos convencer disto. Estas ideias de Pax Britannica, Pax Romana, são ideias muito atrativas, certo? São simples, são fáceis de entender. “Estou a oferecer-vos ordem, o que mais podem pedir?” A vida torna-se previsível, mas não é bem assim… Mas sim, há esta tendência para, por exemplo, juntar todos estes países totalmente diferentes no chamado Sul Global. Quer dizer, isto é uma construção. Eu mostrei o exemplo das diferentes formas como o Sul Global olha para quem está a quebrar as regras. Alguns consideram que são os EUA, a opinião pública na Índia diz que é a China. Se estivermos na Europa dizem que é a Rússia, porque temos a Ucrânia à porta… Pessoas diferentes têm problemas diferentes, portanto está tudo muito fraturado e fragmentado politicamente, porque hoje vemos o mundo de forma diferente. Não é como se houvesse uma hierarquia de poderes aceite, como se todo o poder estivesse concentrado em dois blocos.
Sobre esta questão dos dois blocos, Walter Russell Mead defende que é preciso voltar ao hard power, diz que o Ocidente se focou demasiado no soft power nas últimas décadas e se esqueceu do que é mais importante. Concorda?
Na verdade sim, concordo com ele no sentido em que o hard power é a base do soft power, ou seja, sem hard power o soft power é inútil e também é perigoso, e acho que um bom exemplo disso hoje é a China. A China tem um poder tremendo, económico e militar, que tem vindo a construir, e tecnológico também. Mas em termos de soft power, tem o mesmo poder do que a Grécia, talvez até menos. Muita da resistência à China, à ascensão da China, deve-se a isso, à ausência de soft power, à falta de atratividade. Já a América é um caso interessante. A América tem soft power, mas é um soft power que se baseia no facto de defender a liberdade. Que partes do soft power americano é que funcionam? Porque é que as pessoas gostam de coca-cola? Porque é que gostam de calças de ganga? Porque é que gostam de rock’n’roll? São sinais de rebeldia, de rebelião, representam a liberdade e, enquanto os EUA representarem a liberdade, mesmo que não a pratiquem no seu país ou noutros sítios, continuam a ter um soft power considerável. Tem de haver um equilíbrio. Mas não se pode ter soft power sem hard power e, nessa medida, Mead tem razão, o hard power tem de ser a base – mas também não é suficiente por si só.
Concorda que, do lado do Ocidente, tem faltado hard power para garantir esse equilíbrio?
Sim, aliás, como dizia, acho que o poder está hoje mais bem distribuído pelo mundo. A China e os EUA correspondem hoje a menos de 50% do PIB mundial e a cerca de 50% do poder militar mundial. A União Soviética e a NATO juntas correspondiam a mais de 80% do PIB mundial e a bem mais do que 80% do poder militar, entre os dois detinham o domínio mundial. Mas a China e os EUA não podem governar o mundo, mesmo que quisessem. Não é o caso neste momento, mas se se juntassem amanhã, continuariam a ter de lidar com esse facto. E é por isso que a Rússia pensa que pode fazer o que quer na Ucrânia, é por isso que Israel faz o que quer na Palestina, para onde quer que olhemos as potências médias pensam que têm espaço, e porquê? Porque não há ordem, não há uma hierarquia estabelecida, e não há ninguém para fazer cumprir as regras.
Falando da China: há alguns anos a postura dos EUA era a de que “ou fazem negócios connosco ou com a China” mas, recentemente, num encontro com jornalistas portugueses, o vice de Joe Biden para o Crescimento Económico assumiu outra postura, disse que os EUA "não estão a desvincular-se da China, apenas a reduzir os riscos".
Claro, porque os Estados Unidos dependem da China, como muitos outros países dependem da China. Tal como a China precisa dos Estados Unidos, a China não pode sobreviver sem os Estados Unidos.
Pelo que diz ser a ausência de uma ordem?
Sim, mas como disse, a ordem é sobrestimada.
Também diz que a ausência de ordem é o que traz criatividade no meio do caos.
Claro. Repare que, em termos gerais, não nos saímos mal no passado.
E o que antecipa para o futuro?
Sou um otimista. Não creio que os seres humanos possam ser derrotados assim tão facilmente. Não acho que sejamos estúpidos. Sou um otimista porque penso que a tensão é criativa, e que através dela podemos encontrar soluções e coisas em que nunca pensámos antes. Não o fazemos se estivermos confortáveis num sofá, fazemo-lo quando somos forçados a fazê-lo. Para mim, os grandes desafios estão agora em novos domínios, certo? No clima, na tecnologia... Como é que usamos a tecnologia e como é que podemos usá-la bem? Coisas como a dívida dos países em desenvolvimento, por exemplo, podem ser resolvidas. Não é que não conheçamos as soluções, precisamos é de vontade política para as resolver. E isso tem de ser visto como sendo do interesse de quem detém atualmente o poder para o resolver. Mas se calhar sou congenitamente otimista (risos).
Esse otimismo não é uma coisa que se veja muito por estes dias…
Sim, mas eu olho para a minha vida e sabe o que vejo? Nasci pouco depois de a Índia se tornar independente e vejo todas as mudanças na Índia desde então, vejo um mundo muito melhor para a maioria dos indianos do que na altura. E naquela altura quem é que previa que teríamos uma hipótese? A maioria das pessoas achava que a Índia não ia durar enquanto nação, que ia desintegrar-se, que não íamos ser capazes de lidar com os nossos assuntos, que os indianos iriam ser sempre pobres. Mas isso está a mudar. Eu vejo essa mudança e é se calhar aí que reside a diferença. Mas claro, se eu estivesse num país em declínio, se calhar não era assim tão otimista.
Até os países em declínio têm uma hipótese em teoria?
É isso, acredito que têm. Penso que os países em declínio de ontem são os países em ascensão de amanhã.
Falando em declínio, não posso deixar de lhe perguntar sobre a União Europeia, que nasceu deste sonho também otimista de unir diferentes povos e pô-los a trabalhar em conjunto, mas que, neste momento, dirão alguns, está a atravessar uma verdadeira crise existencial, entregue a populismos, políticas identitárias e divisões. Também está otimista em relação ao futuro da União Europeia (UE)?
Acho que a política é o real problema. Para mim, o erro que se comete é comparar a UE a um Estado unitário, esperar que seja como o Reich alemão ou algo assim quando não é assim, não é suposto ser assim nem pode ser assim, porque senão não acomodamos todas as pessoas. A Europa é diversa. A UE é, de certa forma, comparável à Índia, tem muitas línguas, muitas pessoas diferentes, com formas diferentes de gerir as suas vidas e, por definição, a UE tem de ser interligada, o que significa que será menos eficiente. Mas se olharmos para o que alcançou, a UE está a atingir o seu objetivo-base. Não só, em grande medida, manteve a paz – foram fatores externos que causaram os atuais problemas – como também melhorou a prosperidade e impediu um declínio acelerado da Europa. Afinal de contas, pensemos na situação da Europa depois da guerra e no que as duas guerras fizeram à Europa. Os primeiros empréstimos do Banco Mundial foram para a Grã-Bretanha e depois para a Europa. Por isso, a meu ver, a UE alcançou de facto o que se propôs fazer. O problema é que a avaliamos com base em padrões impossíveis e depois dizemos “Oh, olhem para ela, está em crise”. Mas é assim que vai funcionar, ou seja, será um processo constante de negociação e assim por diante, porque toda a gente tem de ser acomodada e tida em conta. É como a democracia: é confusa, mas é melhor do que todas as alternativas.
Shivshankar Menon esteve em Portugal a convite do Clube de Lisboa para participar na conferência "Um Mundo Dividido", que decorreu entre os dias 10 e 11 de outubro na Fundação Gulbenkian
Esta entrevista foi realizada por Joana Azevedo Viana e publicada pela CNN, 16.10.2024.