A Ajuda ao Desenvolvimento ameaçada

Nos últimos anos, os impactos económicos e sociais da pandemia, o agravamento das ameaças de segurança e da conflitualidade, particularmente com a guerra na Ucrânia e mais recentemente no Médio Oriente, e as crises energética e inflacionista associadas têm vindo a colocar em segundo plano compromissos internacionais assumidos no âmbito do desenvolvimento global, dos Direitos Humanos e até do combate às alterações climáticas. 

Em 2022 e 2023, as emissões globais de gases com efeito de estufa continuaram a aumentar, quando deveriam estar em grande desaceleração para cumprir as metas do Acordo de Paris. Previsivelmente, nenhum dos objetivos globais acordados em 2015 nas Nações Unidas, no quadro da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, será atingido e várias das metas estão mesmo em regressão, como é o caso dos progressos alcançados em décadas anteriores na redução da fome no mundo.

Há mais de 50 anos, foi definida a meta internacional de afetação de 0,7% do Rendimento Nacional Bruto à Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD). Essa meta foi crescendo em importância e abrangência, sendo sucessivamente reafirmada pelos países nos fóruns internacionais e regionais, desde as Nações Unidas à União Europeia. Hoje, porém, os orçamentos da ajuda ao desenvolvimento estão sob enorme pressão nos países mais desenvolvidos, e especificamente naqueles que têm contribuído com valores mais expressivos para a assistência humanitária e o desenvolvimento global.

No Reino Unido, os cortes anunciados em 2020 como uma medida temporária em função da pandemia não foram ainda revertidos, com impactos na vida de milhões de pessoas em todo o mundo. Na Suécia e na Noruega, os governosanunciaram um abandono das metas de ajuda ao desenvolvimento que cumpriam há várias décadas. A Alemanha reduziu consideravelmente o seu orçamento da ajuda externa nos últimos dois anos e a França definiu agora um corte de 12,5% no orçamento anual. 

Estes cortes representam muitos milhares de milhões de euros, afetando de forma desproporcional as populações mais vulneráveis e os países mais frágeis e contribuindo não apenas para o agravamento da pobreza e das desigualdades, mas também das tensões sociais e da conflitualidade, o que acrescenta uma nova camada de incerteza e de dificuldades em países que, por definição, mais precisam dessa ajuda. No plano humanitário, enquanto o mundo enfrenta crises humanitárias com maior frequência e escala - em 2023, pelo menos 360 milhões de pessoas precisavam de ajuda urgente, o maior número dos últimos 30 anos – os apelos humanitários das Nações Unidas estão largamente subfinanciados.

É um facto que a ajuda ao desenvolvimento nunca determinou o desenvolvimento de um país, na medida em que este depende da combinação de fatores internos e externos que impulsionam ou prejudicam os progressos económicos e sociais. É preciso relembrar, contudo, que a cooperação e a ajuda ao desenvolvimento têm contribuído de forma decisiva para a melhoria dos sistemas de saúde e de educação em muitos países em desenvolvimento, para o empoderamento das mulheres e para o apoio a grupos sociais vulneráveis, para o empreendedorismo, para leis e instituições mais eficazes, entre outros exemplos. Mais importante, essa ajuda salva vidas, de forma direta com a ajuda humanitária e de emergência, em situações de crises complexas, guerra e desastres naturais, mas também indiretamente através do apoio à melhoria das condições de vida de muitos milhões de pessoas, rumo a sociedades com maior justiça social e um desenvolvimento económico menos desigual.

Além disso, o contributo para o desenvolvimento global é uma responsabilidade partilhada da qual os países não se devem demitir, quer por imperativos de solidariedade global e de construção comum de um mundo mais justo e sustentável, mas também por interesse próprio, dado os efeitos alargados das crises e a impossibilidade de “ilhas de desenvolvimento” num mundo interdependente.

Em Portugal, a Estratégia da Cooperação Portuguesa 2030, aprovada em novembro de 2022, define uma calendarização de aumento gradual da APD, em consonância com os compromissos internacionais assumidos, para além de prever várias medidas para aumento da eficácia dessa ajuda, para melhorar os seus impactos. Vários dos partidos políticos candidatos às eleições legislativas incluíram nos seus programas o necessário contributo de Portugal para realizar a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e o objetivo de aumentar a ajuda ao desenvolvimento, alguns especificando mesmo a meta internacional de 0,7%. Infelizmente, não é o caso nem da coligação vencedora das eleições, nem do partido que mais cresceu em número de deputados.

 

Patrícia Magalhães Ferreira, investigadora e consultora sobre Desenvolvimento Global e Cooperação, membro do Clube de Lisboa.

Artigo originalmente publicado no Diário de Notícias, em 12 de março de 2024.

Imagem: UN Photo, Libéria, 2019.