A guerra já não é (só) israelo-árabe

Desde que em 1948 uma coligação de sete países árabes tentou impedir o nascimento do moderno Estado de Israel que nos habituámos a falar de conflito israelo-árabe. Há boas razões para essa tradição, nomeadamente as duas grandes nações muçulmanas da região que não são árabes, a Turquia e o Irão, terem mantido durante décadas boas relações com Israel. Mas hoje a expressão, por muito consagrada que seja, peca por escassa, já que o Irão (persa) se assumiu desde a Revolução Islâmica de 1979 como o grande inimigo do Estado Judaico, com a destruição de Israel e a defesa da causa palestiniana a ser um elemento chave da ideologia dos ayatollahs. Isto mesmo que o destino dos palestinianos (árabes) continue como o principal foco de tensão regional, mesmo que os libaneses do Hezbollah (árabes) sejam a grande ameaça junto das fronteiras de Israel e mesmo que os Houthis do Iémen (árabes) se tenham juntado à coligação informal que procura destruir o Estado Judaico. 

A realidade é que depois das quatro guerras israelo-árabes, a última das quais em 1973, os países árabes foram aceitando pouco a pouco a existência de um Estado Judaico na região. E o momento emblemático dessa mudança de atitude, o trocar do conflito pela paz, foram os Acordos de Camp David em 1978, quando sob o patrocínio dos Estados Unidos o israelita Menachem Begin e o egípcio Anwar al-Sadat apertaram as mãos e fizeram os seus países reconhecer-se mutuamente. Depois veio a normalização de relações entre Israel e a Jordânia, em 1994. E mais recentemente aconteceram os Acordos de Abraão, que levaram Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Marrocos e Sudão a reconhecer Israel, uma vez mais com os Estados Unidos a servirem de mediador.

Esta crescente normalização das relações do mundo árabe com Israel foi uma das causas do ataque do Hamas a 7 de outubro do ano passado. Matando mais de 1200 israelitas e raptando mais de 200, o Hamas não só resgatou a questão palestiniana do quase-esquecimento como, ao provocar a retaliação de Israel sobre Gaza, obrigou os líderes árabes a ouvir a  indignação da rua árabe. Com mais de 40 mil mortos em Gaza, a mínima empatia com Israel é tabu. Quando muito o Egito pode ser um intermediário entre Israel e os palestinianos, com ajuda do Qatar, que tem uma velha relação com os dirigentes do Hamas. Já a Arábia Saudita suspendeu qualquer participação nos Acordos de Abraão e deixou bem claro que o reino só estabelecerá  relações diplomáticas com Israel depois da criação de um Estado Palestiniano com Jerusalém Oriental como capital.

Entre a necessidade de satisfazer as suas opiniões públicas e o imperativo de não desagradar aos Estados Unidos, os países árabes vão doseando o apoio aos palestinianos e as críticas a Israel, mas também pragmaticamente tirando vantagem de um conflito que enfraquece o Irão e o chamado eixo da resistência, que junta Hezbollah, Hamas, Houthis, regime sírio e milícias iraquianas. Com exceção do Hamas, que é sunita, trata-se de uma coligação informal xiita, que ainda há bem pouco tempo desafiava a influência da Arábia Saudita, campeã do sunismo, em várias frentes, do Iémen à Siria e ao Iraque, países onde as duas correntes principais do islão coexistem.

Em 2023, com mediação da China, sauditas e iranianos terão chegado a um entendimento para evitar continuar a hostilizar-se com base numa rivalidade entre sunitas e xiitas que também é, de certo modo, uma rivalidade entre persas e  árabes. Mas não é difícil pensar que no mundo árabe, e aqui não falo só dos sauditas, há quem olhe interesseiramente para o embate entre Israel e o Irão como uma forma de sair indiretamente reforçado, desde que o conflito não fique fora de controlo e os atinja.

 

Leonídio Paulo Ferreira, Diretor-adjunto do DN, membro do Clube de Lisboa.

Artigo originalmente publicado no Diário de Notícias, em 4 de outubro de 2024.

Imagem: Unsplash, Hammam Fuad (Palestina, setembro 2023)