As Nações Unidas refletem, na sua dimensão política, a complexidade da comunidade internacional. Tendo passado mais de quatro décadas a trabalhar em questões internacionais, creio poder dizer que estamos a enfrentar um dos períodos de maior perigo para a paz e a cooperação entre as nações. E quando olhamos para o futuro não podemos ficar senão ainda mais preocupados. Contrariamente ao negativismo, que permite ganhar votos, o pessimismo não mobiliza os cidadãos. É essencial, porém, ser-se realista e ter a coragem de falar franco e claro. Isto significa, nomeadamente, defender os valores que hoje consideramos universais, a começar pelo valor da vida e os direitos humanos, combater o racismo e as desigualdades entre os povos, e sublinhar o papel multidimensional da ONU. Os governos que não respeitam estes princípios devem ser condenados sem hesitação nem jogos de oportunismo.
Infelizmente, encontramo-nos uma vez mais no tempo do cinismo, da hipocrisia política.
Temos um primeiro-ministro que ousa atacar diretamente o secretário-geral das Nações Unidas, disparar contra uma missão da ONU de manutenção da paz, cujo mandato tem sido sucessivamente renovado pelo Conselho de Segurança, o que significa um controlo apertado dos resultados obtidos, e que ordena bloqueios humanitários e atos que poderão ser julgados como crimes de guerra. E respondemos como se tudo isso se tratasse de meras ações de legítima defesa.
Temos ainda um jovem ditador de um país cimeiro na tabela mundial da produção de petróleo que manda esquartejar um jornalista, é severamente criticado por tal feito, mas anos depois é trazido nas palmas das mãos pelos dirigentes europeus reunidos em Bruxelas. O cheiro a petróleo continua a ser um perfume de eleição, que facilmente se sobrepõe ao forte odor das vítimas despachadas em execuções sumárias.
Entretanto, um antigo pide de luxo, hoje arvorado em senhor vitalício de uma grande potência, viola a soberania de um povo vizinho, destrói vidas, bens e infraestruturas e é tratado de modo vacilante, com a ambiguidade dos fracos, que se fecham às sete chaves na sua toca enquanto a casa ao lado está a ser assaltada. Noutras partes do mundo, como no Sudão, assiste-se à dor extrema das populações e fica-se em silêncio. Não há vontade política nem espaço mediático para tratar do sofrimento de povos que vivem noutras latitudes e têm uma cor de pele diferente.
Talvez seja oportuno acrescentar que as minhas andanças pelos conflitos do mundo me mostraram que o racismo é amiúde um fator de peso no tratamento das disputas violentas entre Estados ou no posicionamento de muitos perante certas guerras civis. Quando alguns europeus olham para a Palestina ou para o mundo em redor, e tomam uma posição pró-guerra, não estarão a ser influenciados pela dimensão racial?
Mais perto de casa, convém pensar nas consequências das presidenciais norte-americanas, caso Donald Trump ganhe os votos no colégio eleitoral. Uma América liderada por um narcisista tresloucado, amigo e subordinado daqueles que nos olham como seus inimigos, e com políticas inspiradas por gente bizarra como Elon Musk, isso poderá ser um perigo para o futuro da aliança transatlântica e para o equilíbrio das relações internacionais.
Acrescento, novamente, que não quero ser pessimista. Mas a possibilidade de uma vitória de Trump é maior do que muito boa gente pensa. Que nos ensinaria um resultado desses? Responderia que a brutalidade verbal e o populismo, mais o controlo abusivo e mentiroso das redes sociais e das cadeias de televisão popularuchas são hoje alavancas de poder poderosíssimas, dão votos, mesmo nas democracias avançadas.
Certos estudiosos bem como alguns comentadores de geopolítica, trapalhões ou superficiais, dizem que insistir no respeito pelos valores e pelas instituições internacionais é prova de imbecilidade política, de incapacidade de compreender os interesses estratégicos das diversas potências. Criticar Vladimir Putin, Benjamin Netanyahu, Mohammed bin Salman, Ali Khamenei, Xi Jinping, e outros do género, demonstraria essa tolice, um alto grau de ingenuidade, uma atitude de ONG. Respondo-lhes dizendo o que as vítimas das guerras e das ditaduras me ensinaram ao longo do tempo: deixem os cidadãos tranquilos, preocupem-se com a harmonia social e uma prosperidade que seja sustentável, façam da política um serviço à comunidade e um empenho pela paz. Não me digam que é impossível, que não conseguiremos transformar as incongruências, a violência e o cinismo atuais e construir um quadro futuro positivo. O otimismo pode e deve ser uma utopia necessária.
Victor Ângelo é Conselheiro em Segurança Internacional, ex-Secretário-Geral Adjunto da ONU, membro do Clube de Lisboa.
Artigo originalmente publicado no Diário de Notícias, em 18 de outubro de 2024.
Imagem: Unplash, Kyle Glenn, 2018.