O suposto Sul global, os BRICS, os novos não-alinhados exploram o seu suposto ressentimento, mas o que os mobiliza é a oportunidade aberta por um mundo com potências em competição por aliados.
O encontro dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), mais uns quantos, a semana passada, em Kazan, na Rússia, supostamente conta uma história: a de vários países do chamado “Sul Global” que se afastam do Ocidente e se aproximam da Rússia, que afinal não está assim tão isolada. Na verdade, aquele encontro conta outra história: a de um mundo em que as médias potências se transformam em potências regateiras, e em vez de se alinharem com um ou outro lado tentam logicamente extorquir de cada um o mais e melhor que podem. Mas isso não é acerto de contas antigas. É exercício de poder em circunstâncias novas.
Os analistas e os críticos do Ocidente, que frequentemente falam a partir do conforto ocidental, gostam de dizer que o desalinhamento destes países em relação ao Ocidente, em geral, é à Europa em particular, é o resultado da falta de credibilidade ocidental e europeia por excesso de hipocrisia. A tese tem bons argumentos, e encaixa no eterno sentimento de culpa dos ocidentais. Mas tem um defeito: não resiste ao confronto dos factos.
Sim, a Europa promove a Democracia, mas tem partidos extremistas a crescer e governos de democraticidade muito duvidosa que até presidem à União Europeia. E, além disso, tem posições sobre o Médio Oriente que algum resto do mundo tem dificuldade em aceitar. Tem os Direitos Humanos em tudo quanto é discurso e legislação, mas convive com alguns dos maiores patifes internacionais. Desde logo o príncipe saudita. Preocupa-se com umas guerras, mas ignora outras. Comove-se com algumas tragédias, mas não mobiliza muitos cêntimos por outras. E depis há o colonialismo lá, o racismo cá ou as reparações supostamente devidas. Postas as coisas assim, a lista do ressentimento é longa, e a das cobranças também.
Há, porém, um problema com a tese do ressentimento do Sul e inconsistência do Norte. Vamos mesmo acreditar que o Brasil encontra na Rússia a clareza moral que lhe falha na Europa? É na Índia que está a boa democracia? Na China é que estão os defensores dos Direitos Humanos universais coerentes que a Europa supostamente já não sustenta com vigor? Com certeza que não.
O problema dos BRICS -mais o Irão e a Turquia - com a Europa e o Ocidente não é moral. A Turquia, a Índia, a China, a Rússia, a África do Sul, o Irão ou o Brasil não sofrem propriamente de superioridade moral. O seu problema é mais simples. As circunstâncias internacionais permitem-lhes fazer valer o seu peso no mundo e negociar com as potências e as potências aspirantes. Claro que alguns destes países, e outros, podem ter queixas contra as políticas ocidentais, e sobretudo europeias, nomeadamente quando lhes impõem regras sobre direitos humanos, combate às alterações climáticas e democracia que criam custos económicos ou riscos para o tradicional exercício do poder autocrático de alguns países que outrora se diriam “em vias de desenvolvimento”. E isso é uma coisa que desagrada a ditadores em geral, e a nacionalistas em particular.
Na verdade, o ponto é esse. Quem considera a Europa hipócrita, mas gosta da companhia da China e da Rússia, já para não falar do Irão, não tem um problema com a inconsistência dos valores ocidentais. Tem uma oportunidade num mundo mais competitivo e está a usá-la. Basta consultar a lista de viagens do Presidente Modi ao exterior para perceber onde estão as prioridades indianas. E recordar o último tour europeu de Xi Jinping, que veio ostensivamente encontrar-se com os nossos maiores problemas.
Uma coisa, porém, é não aceitar a tese da maior hipocrisia ocidental, vinda de quem vem. Outra, diferente e útil à discussão, é reconhecer quatro coisas: que num mundo mais competitivo e (ainda?) não organizado em blocos claros, estes países estão a explorar as circunstâncias e, compreensivelmente, a procurar tirar partido da competição entre potências para promoverem o seu valor negocial e os seus interesses; que os regimes de muitos destes países genuinamente não gostam dos valores ocidentais, entre eles, precisamente, a democracia, os direitos humanos e o combate às alterações climáticas; que a exportação de algumas regras europeias impõe ónus às suas economias e administrações que estes países dispensavam; e, sim, que a nossa lista de prioridades não é a sua. Mas isso não é exactamente um problema de hipocrisia, são os interesses de cada um. De resto, se a Europa fosse absolutamente coerente, impusesse mesmo os seus valores e só se desse com quem os pusesse em prática, alguns destes países teriam muito mais razões de queixa.
Isto tudo dito, é bom atentar no resto do argumento. Este realinhamento não é um exclusivo dos países aspirações a potências regionais. As (ainda?) potências também se reorganizam. A procissão de líderes europeus à China, Scholz, Macron, Sanchéz, Meloni ou Von der Leyen, nunca teria existido, pelo menos com esta intensidade, há uma década. E há uma coisa que sabemos. Se Trump ganhar, as visitas dos europeus a Washington não serão festas de amigos. Isto basta para percebermos por onde anda a percepção de poder no mundo.
Henrique Burnay, Consultor em Assuntos Europeus, membro do Clube de Lisboa.
Artigo publicado originalmente no Expresso, em 29 de outubro de 2024.
Imagem: Unsplash, Lee Yang, 2016 (Wai Tan, Shanghai, China).