Em competição com a China, distante dos Estados Unidos da América, ameaçada pela Rússia, a Europa descobre-se com poucos amigos e muitos adversários. E não está preparada.
Um dos líderes europeus mais pro-americano, Donald Tusk, de um dos países europeus mais pro-americanos, a Polónia, resumiu o problema europeu com as eleições americanas: o nosso problema somos nós. ´
Donald Tusk vem da Polónia, um dos países mais próximos dos Estados Unidos da América dentro da União Europeia, é o mais importante chefe de um governo liderado pelo Partido Popular Europeu. Depois da Alemanha (sociais democratas), França (liberais, dentro do género), Itália (conservadores à direita), e mesmo Espanha (socialistas mais à esquerda), a Polónia, apesar de membro recente, é um dos maiores países da UE. Além disso, Tusk foi presidente do Conselho Europeu, antes de Charles Michel, e tem como ministro dos negócios estrangeiros do seu governo Radek Sikorski, o muito americanizado e casado com Anne Aplebaum.Muito mais próximo da América é difícil.
Poucos dias antes, o ex-presidente da Finlândia, o país neutro da Guerra Fria que acaba de aderir à NATO, apresentou um relatório – outro – que defende que a União Europeia precisa de um serviço de Inteligência próprio. “O bloco deve dar luz verde a um "serviço de cooperação de inteligência de pleno direito a nível da UE"”, disse Sauli Niinistö.
Pouco importa quem ganha as eleições presidenciais americanas. Para a Europa, o que importa é o que a Europa for capaz de fazer por si. E vai ter de o fazer, porque o tempo mudou e a nossa segurança e lugar no mundo dependem sobretudo de nós. Foi mais ou menos isto que tanto Niinistö como Tusk quiseram dizer. E, independentemente do que se pense sobre uma putativa CIA europeia, têm razão no essencial: o tempo em que a Europa se preocupava consigo e os americanos se preocupavam com o mundo, acabou. Sobretudo porque o mundo com que os americanos se preocupam não inclui a protecção da União Europeia. Por um lado, porque têm outras prioridades. Por outro, porque os seus interesses já não estão tão alinhados com os nossos.
A Europa viveu várias décadas debaixo da protecção americana. Primeiro, durante a Guerra Fria, protegiam-nos da União Soviética. Depois, os americanos faziam a maior parte das guerras que pareciam necessárias, levando consigo os Europeus, quando foi caso disso. E fazíamos todos muito comércio e acreditávamos no poder transformador da Globalização. Que aconteceu. Só não foi como estava previsto.
Os Estados Unidos tinham o hard power, a Europa tinha o soft power. Eles tinham armas e faziam guerras, nós dávamos fundos e promovíamos os bons valores europeus, que haveriam de inspirar o mundo, em geral, e a vizinhança em particular. Foi assim durante décadas. Até que o mundo mudou. A competição americana com a China recentrou os Estados Unidos da América. A ameaça russa aqui ao lado, a tensão no Médio Oriente e a competição com a China (também) e mesmo com os Estados Unidos, obriga-nos a pensar de outra maneira.
O relatório Letta pede que a Europa tenha mais mercado interno. O relatório Draghi pede que a Europa tenha mais competitividade, a nova palavra-chave em Bruxelas. O relatório Niinistö pede que a Europa tenha mais autonomia e liderança na sua segurança. Do lado de lá do atlântico, um dos candidatos à Casa Branca diz que “alguns dos nossos aliados são piores do que os nossos supostos inimigos”, querendo referir-se aos europeus. A outra candidata gosta mais de nós do que Trump, sim, mas não tem nenhuma declaração particularmente significativa e marcante sobre a relação com os europeus.
Aqui chegados, há três coisas que os europeus precisam de fazer. Primeiro, fazer por si. A União Europeia tem de ter algumas ideias claras sobre como se quer relacionar com o resto do mundo, começando pelos vizinhos próximos, da Rússia a Marrocos, incluindo os candidatos à adesão. Se precisa de amigos, e precisa, tem de os procurar ter. E ser capaz de os defender, ou ajudar a defenderem-se.
Em segundo lugar, independentemente do que se passe esta terça-feira nos Estados Unidos da América, a Europa tem de manter e reforçar laços com os americanos. Para lá das relações com a Administração, seja Harris ou Trump, os europeus e os americanos têm de se conhecer melhor e conviver mais. A Deputada europeia Lídia Pereira tem defendido um Erasmus UE/EEUA reforçado. Mesmo que seja difícil, a começar pela diferença do valor das propinas, alguma coisa assim vai ter de acontecer. Europeus e americanos têm de se afastar menos e aproximar mais. Os programas que os americanos faziam, e fazem, para dar a conhecer o país a potenciais líderes estrangeiros pode ser uma boa inspiração para o que os europeus podem fazer com jovens americanos. Virem cá, irmos lá. Reforçar laços que estejam para lá das administrações.
Finalmente, em sentido contrário e por mais que custe a um americanófilo (confesso), a visão francesa do mundo, que sempre defendeu alguma divergência e muita desconfiança relativamente à América, está a ganhar terreno. Ao mesmo tempo que se procure resistir a esse processo, é preciso que os interesses europeus – uma coisa difícil de definir uma vez que há pelo menos 27 perspectivas diferentes do que devem ser os interesses europeus – têm de ser reconhecidos como autónomos face aos Estados Unidos. Aliados, com certeza. Parceiros no Ocidente, sem dúvida. Mas com autonomia, inevitavelmente.
Podemos não saber como é que esta história vai acabar, mas por agora não está a correr muito bem.
Henrique Burnay, Consultor em Assuntos Europeus, membro do Clube de Lisboa.
Artigo publicado originalmente no Expresso, em 5 de novembro de 2024.
Imagem: Unsplash, Lukas S. (Estrasburgo, 2024)