A cimeira anual dos BRICS teve lugar esta semana em Kazan, uma cidade histórica da Federação Russa. Participaram à volta de 20 chefes de Estado e de governo do chamado Sul Global, o que permitiu a Vladimir Putin dizer que não se encontra isolado. Está, de facto, acompanhado por alguns governos que dificilmente podem ser considerados como regimes democráticos e de governação razoavelmente virtuosa.
Não é a Rússia que atrai a maioria dos participantes. O chamariz é a China. O seu PIB representa mais de 70% do total dos BRICS. Além disso, é a única potência que consegue fazer concorrência, quer económica quer política, aos países do G7. Aprova créditos com facilidade, sem exigir as reformas necessárias, contrariamente aos países e às instituições ocidentais. Para muitos governos essa é uma enorme vantagem, pois permite financiar projetos que dão votos, autênticos elefantes brancos, e alimentar a corrupção. Para os chineses é a oportunidade de se apropriarem de sectores vitais das economias desses países, incluindo o controlo de matérias-primas essenciais e de portos marítimos de importância estratégica.
A China também vê nessa associação uma maneira mais de competir com os EUA e os outros membros do G7. É a tão proclamada criação de uma nova ordem internacional, exterior ao FMI, aos bancos multilaterais existentes e aos sistemas de transferências bancárias integrados no SWIFT. Essas instituições funcionam com base no rigor económico. A nova ordem funcionaria, caso viesse a ser constituída, na subordinação aos interesses da China e dos seus aliados políticos. Provocaria o empobrecimento ainda maior de muitos países e o enriquecimento exponencial das suas elites. Seria uma organização sem carta de valores nem princípios, exceto a oposição ao dólar, ao euro e à boa governação económica, sem um secretariado representativo dos seus membros e sem meios financeiros, para além dos aprovados por Beijing.
Acreditar que os BRICS levariam à reforma do Conselho de Segurança da ONU e do funcionamento do sistema é pura ilusão. Vende-se essa ficção para atrair países como a Índia, o Brasil ou África do Sul, que são eternos candidatos a um assento permanente. A China fala com brandura sobre o assunto, faz a coreografia diplomática apropriada, mas nunca aprovará a entrada da Índia para o Conselho de Segurança. Por duas razões: é um rival paredes-meias potencialmente muito forte; e para não irritar o Paquistão, que olha para a Índia como o inimigo número um. O Paquistão tornou-se num corredor vital para o acesso da China ao oceano Índico. Essa é sua vantagem estratégica. Não pode por isso ser contrariado por Beijing. Quanto ao Brasil, é visto como um país instável, quer pelos EUA quer por alguns europeus. Terá imensas dificuldades para ultrapassar um provável veto vindo de Washington. O mesmo selo de instabilidade, embora por razões diferentes, é aposto a uma candidatura da África do Sul. Sem esquecer que a Nigéria e o Egito tudo farão para fazer valer as suas candidaturas, em nome do continente africano.
Um outro aspeto fundamental diz respeito à redução do uso do dólar americano e à sua substituição pelas moedas dos BRICS ou moedas locais, nas trocas comerciais entre eles.
É uma ambição irrealista, destinada apenas a pequenos voos. O euro não conseguiu tirar mais de 20% ao peso do dólar no comércio internacional. E a moeda chinesa, o yuan, tem sérias restrições em termos de convertibilidade que travam a sua utilização além-fronteiras. Para já, os mercados preferem pedir empréstimos em yen do Japão, que continua a praticar uma taxa de juro baixa, e investir, em seguida, em obrigações chinesas, que oferecem um rendimento mais elevado. Sem esquecer, por outro lado que a estabilidade e a confiança são dois pilares fundamentais de qualquer moeda, e que essas características não abundam na maioria dos BRICS.
A única certeza é que caminhamos para um mundo multipolar. Há mais mundo para além das realidades americana e chinesa. Modi está nos BRICS para o lembrar e manter a China debaixo de olho.
Victor Ângelo é Conselheiro em Segurança Internacional, ex-Secretário-Geral Adjunto da ONU, membro do Clube de Lisboa.
Artigo originalmente publicado no Diário de Notícias, em 25 de outubro de 2024.
Imagem: Unsplash, Boris Busorgin (Kazan, Rússia)