Donald Trump ganhou a eleição presidencial, com uma margem bem superior à esperada pelos seus apoiantes. Vários analistas têm procurado fazer uma leitura tão completa quanto possível dessa vitória, sobretudo tendo em conta a personalidade profundamente bizarra do candidato, os seus numerosos desencontros com a justiça, a sua incompetência, superficialidade e a perigosidade do seu programa político.
Muitos não queriam nem podiam acreditar que um personagem assim pudesse voltar a presidir à maior potência do mundo democrático. Uma parte maioritária dos eleitores viu a sua competição com a candidata democrata como uma luta do povo contra as elites, ou seja, entre o cidadão comum e aqueles que fizeram da política uma carreira vantajosa e distante das preocupações quotidianas de quem não aguenta o custo da vida e tem de lutar no dia a dia pela sobrevivência. A verdade é que, nos últimos anos, um pouco por toda a parte, a hostilidade em relação às elites políticas tem crescido de modo acelerado. Assim, muitos preferem votar por “um dos seus”, por alguém que parece compreender e querer resolver os problemas com que as pessoas se defrontam diariamente, na precariedade do trabalho, na confusão dos transportes, no funcionamento deficiente dos serviços públicos e de proteção social e perante o alarme social criado em torno da insegurança e da criminalidade violenta. E utiliza-se as redes sociais para dar volume a estas questões e fazer crescer o medo.
Como referi no artigo da semana passada, essa foi a tarefa de Elon Musk, que através da sua plataforma social, o X, introduziu a titanesca dimensão digital neste processo eleitoral. Com a ajuda remunerada de um número incalculável, mas secreto, de colaboradores, publicou diariamente dezenas de tuítes contra a candidatura de Kamala Harris e para promover a de Donald Trump. Essas mensagens foram visualizadas, nalguns casos, mais de dois mil milhões de vezes, um número que deixaria, em sentido figurado, a antiga estátua da virgem Atena de boca aberta e que levaria a Mona Lisa a votar por Trump.
Às asneiras e palhaçadas idiotas de Trump, Musk juntou centenas de milhões de dólares e o poder das redes sociais. Provou assim que um superbilionário que domina a comunicação digital, onde publica 140 caracteres de falsidades e fotografias fabricadas pela Inteligência Artificial, tem nas suas mãos o poder para fazer eleger um primário com jeito para o espetáculo e desplante para dizer as maiores barbaridades e brutalidades. Trump, Putin e outros são políticos poderosos e extremamente perigosos. Mas comparados com Musk, são uma meia-leca. O verdadeiro perigo, que pode acabar com a democracia tal como a conhecemos hoje nos países com o pensamento livre, pessoal, está nas mãos dos superbilionários, detentores de fortunas muito superiores ao Produto Interno Bruto da grande maioria dos países do globo.
Trump irá controlar agora as principais instituições federais, faltando, na altura em que escrevo, conhecer o resultado ao nível da Câmara dos Representantes. O passo seguinte será conseguir o domínio absoluto sobre os comandos militares, os serviços secretos e as polícias federais. Quando isso acontecer, entrará para o mesmo campeonato que já integra outros ditadores, os líderes da China, da Coreia do Norte, do Irão e da Rússia, para mencionar apenas alguns dos principais. O mundo multipolar de que tanto se fala será constituído por gentes desse calibre e pelos seus Estados vassalos.
No meio disto, temos a União Europeia. Ficou agora mais fragilizada e cercada. A Oriente, está Vladimir Putin. Um dos seus objetivos principais é fragmentar a Europa. A Ocidente, e baseando-me nas palavras várias vezes vociferadas por Trump, o objetivo é o mesmo. Ele não entende a importância geopolítica da EU para uma ordem internacional equilibrada e humanista. Vê antes a Europa a partir de três prismas: um concorrente económico dos EUA; um xadrez de pequenos países sem poder e que sempre se detestaram; e como um cliente rico, capaz de comprar o que a economia americana produz. Ignora a possibilidade de a Europa ser um aliado, numa qualquer guerra que possa ocorrer. Na sua opinião, a Europa não tem garras. Mais ainda, Trump e alguns dos seus veem os europeus como possíveis aliados dos chineses. Por razões comerciais, sobretudo, que é o prisma que Trump utiliza para olhar o mundo, para além do espelho de Narciso, onde diariamente contempla a sua imagem.
Victor Ângelo é Conselheiro em Segurança Internacional, ex-Secretário-Geral Adjunto da ONU, membro do Clube de Lisboa.
Artigo originalmente publicado no Diário de Notícias, em 8 de novembro de 2024.
Imagem: Unsplash, Darren Halstead