A geopolítica do coronavírus

A pandemia do coronavírus tem tudo para ser a crise das nossas vidas. Quem está a geri-la? Que soluções estão em cima da mesa? E que efeitos poderá causar nos próximos ciclos políticos e na etapa geopolítica que atravessamos?

A declaração de pandemia feita nesta semana pela Organização Mundial da Saúde oficializa a entrada na terceira grande crise do pós-Guerra Fria, depois do 11 de Setembro e do colapso financeiro de 2008-2009. Estes dois momentos, com epicentro nos EUA, podem ser vistos como resposta à sua espargata militar triunfalista dos anos 1990 e à vertigem desregulatória do seu modelo financeiro. Ambos tiveram efeitos globais tremendos com repercussões que ainda hoje se sentem. Basta lembrar a crescente securitização das democracias, a agressividade contra imigrantes, o custo humano, geoestratégico e financeiro das longas guerras do grande Médio Oriente, o fosso social entre a pequena fatia que mais tem e a multidão que menos possui, a descredibilização das instituições, o alastramento do vírus nacionalista, o bullying ao multilateralismo, a desvalorização da ciência.

Esta cadeia de desvalor que emergiu na última década e meia expõe hoje consequências evidentes na gestão de uma pandemia galopante. Apesar de não ter tido epicentro nos EUA, depressa alastrou para uma centena de países, criando o pânico nas grandes cidades europeias, asiáticas e americanas, a parte do mundo que teria à partida as melhores condições de resposta a uma grave crise de saúde pública. Muitas delas foram compulsivamente fechadas. Mesmo não sendo uma resposta ao comportamento da administração americana, o covid-19 é o seu maior teste. A resposta tem sido não só calamitosa como pode alterar por completo o quadro político e oficializar o fim de uma era geopolítica. De unipolar a unimultipolar, entramos agora numa ordem apolar, sem qualquer liderança ou preponderância evidentes, mais G0 do que G2, G7 ou G20, para usar a feliz expressão do Ian Bremmer.

Os nacionalistas que tomaram conta da política internacional fazem gala de desdenhar a ciência, preferem a chacota aos especialistas e riem-se na cara de qualquer entidade credível quando o alarmismo é diagnosticado. Autointitulam-se exclusivos e legítimos depositários da vontade popular, com as múltiplas perversidades que isso acarreta, desde logo eliminando todos os patamares de intermediação social, política, judicial e informativa em que as democracias assentam. O bullying à ciência foi evidente na ascensão política da crise climática, e tem sido assim na atual crise de saúde pública global. E tal como no combate político diário, também aqui os factos são esmagados sem dó nem piedade. O que interessa é cavalgar as teorias da conspiração que invadem as redes sociais e propagam uma distopia que vai agrupando falangistas um pouco por todo o lado, num corpo coeso e impenetrável à verdade. Mobilizá-los politicamente fica assim muito mais fácil quando os embates eleitorais se aproximam, sendo nessa altura mais fácil consolidar uma mensagem vencedora. Se uma pandemia pode destruir a economia global e gerar o caos, a boataria online é a gasolina mais barata ao dispor de todos os pirómanos entretidos a incendiar as democracias.

De altos cargos do aparelho governamental chinês surgem acusações aos americanos de criadores da guerra biológica. Figuras de proa da administração Trump respondem com "vírus chinês", alimentando uma cadeia de desinformação totalmente irresponsável e que só serve para criar mais pânico social. No meio disto, o presidente americano tratou de destruir a mensagem do CDC (equivalente à nossa DGS) de 24 fevereiro, quando esta alertou para a inevitabilidade do alastramento maciço do vírus. No Twitter, métrica adequada à sofisticação da sua comunicação, criou a ilusão de controlo absoluto sobre uma situação que não lhe merecia alarmismo, iria passar depressa e não passava de uma tramoia dos democratas. Metodologicamente, a primeira reunião na Casa Branca dedicada ao covid-19 ocorreu apenas sete dias depois de o primeiro caso ter sido descoberto nos EUA, seis dias depois de a OMS ter denunciado a dimensão da crise em Wuhan e quatro dias após a China ter encerrado a província de Hubei. Trump pôs Mike Pence à frente da equipa e fez saber que, para além das cabalas em curso para o derrotar, seriam Jared Kushner e Stephen Miller, o genro especialista em nada e o speechwriter especialista em tudo, os autores da mensagem oficial da América ao mundo. Enquanto isso, Trump foi jogar golfe para a Florida.

No regresso ao trabalho, ou ao Twitter se preferirem, Trump pode assistir à quarta maior queda histórica da bolsa num só dia, ao alastramento do vírus a 42 estados atingindo 1215 pessoas e matando 36, à presidencialização de Joe Biden que se distinguiu na sensatez das palavras e no plano apresentado com recurso aos especialistas, à eternização de Putin no Kremlin depois de alterada a Constituição, e à queda abrupta do preço do petróleo atingindo a indústria americana sem apelo nem agravo. O coronavírus pode ter tido epicentro na China, mas é no osso da administração americana que pode fazer mais mossa. Aqueles que juravam a pés juntos que as presidenciais de novembro iam ser um passeio para Trump, podem ter de, no aconchego da sua reclusão forçada, tomar um calmante para a excitação precoce.

A liderança da administração é internamente desastrosa e externamente uma ausência assumida. Não digo que a posição desta China ascendente não possa sair beliscada, se assistirmos a uma diversificação mundial que quebre a dependência da sua manufatura e cadeias de abastecimento. Estou em crer que a Europa não sairá também bem, mesmo que injete biliões nas economias e tome as medidas preventivas de contenção do vírus mais ou menos em coordenação. O que não pode é protelar ajuda rápida a Itália, assistir ao auxílio imediato da China e esperar que um povo que olha para a crise da zona euro primeiro, para a crise migratória depois, e hoje tem números alarmantes de euroceticismo, assista a quebras de solidariedade sem agravar o espírito anti-UE. Uma pandemia pode ter à espreita uma receita médica robusta. A paralisação económica pode ver na ação extraordinária do Estado a fórmula mais eficaz de contenção de danos sociais graves. Mas um projeto de coesão política não sobrevive à desistência faseada dos seus membros.

A política continua a precisar de políticos: sensatos, corajosos, capazes de se rodear dos melhores, de ouvir quem sabe, de criar a confiança indispensável à comunidade que governa de forma que esta não deslasse de vez. A pandemia do covid-19 mostra bem como a receita nacionalista é um desastre no método, na comunicação, na gestão de danos públicos, na confiança interna gerada. Trump e a sua América são o espelho disto. Mas a atual crise global (não necessariamente da globalização) é também um tiro na receita nacionalista porque faz valer os méritos da coordenação interestatal, da articulação intercontinental, da importância vital das organizações internacionais na monitorização e resposta a um vírus que não escolhe nações nem ideologias. E é a demonstração cabal de que nunca, como agora, o discurso político moderado, baseado na verdade e institucionalmente mobilizador, faz toda a diferença entre superarmos coletivamente a maior crise das nossas vidas ou cairmos todos com estrondo, numa anarquia sem fim. Que o trumpismo seja derrotado com o covid-19.

 

Bernardo Pires de Lima, Investigador universitário e membro do Clube de Lisboa

Artigo publicado originalmente no Diario de Notícias, 14.03.2020

Imagem: Foto do artigo publicado no DN, © Vítor Higgs