Geopolítica do vírus: o choque América-China?

Bernardo Ivo Cruz, Carlos Branco, Carlos Gaspar, Diana Soller, Francisco Seixas da Costa, Luís Nuno Rodrigues, Luís Tomé, Tiago Moreira de Sá e Victor Angelo ajudam a perceber o impacto da pandemia.

América versus China e vice-versa

Títulos como "Estados Unidos e China tornaram o coronovírus num jogo de futebol geopolítico" (Foreign Policy), "Pequim e outras capitais tentam tirar o máximo proveito geopolítico do coronavírus" (Japan Times) ou "China-Estados Unidos: a guerra fria do covid-19" (Le Monde) até podem passar despercebidos entre as notícias do número galopante de mortes em Itália e Espanha ou a contabilidade diária dos infetados e vítimas mortais em Portugal, mas revelam bem como o vírus identificado pela primeira vez no final do ano passado na cidade chinesa de Wuhan pode mudar o mundo, nomeadamente a relação entre os países ao ponto de Xi Jinping ter telefonado a Donald Trump para se "unirem para combater o vírus", com o presidente americano a dizer depois que teve uma "boa conversa" com o homólogo chinês e que "a China passou por muita coisa e desenvolveu um forte conhecimento do vírus. Estamos a trabalhar juntos. Muito respeito".

Luís Tomé, especialista em relações internacionais, não tem, aliás, dúvidas sobre a chegada de mudanças geopolíticas, só sobre a sua dimensão: "É quase certo que esta pandemia venha a ter profundas repercussões na ordem internacional, cuja amplitude dependerá de três fatores, em cada país/potência e região: 1) a extensão do número de vítimas do covid-19 e a duração da situação de crise; 2) a dimensão dos efeitos económicos e sociais; 3) a gestão da crise e a capacidade de reação e de resposta das lideranças das potências e organizações regionais e internacionais."

E o diretor do departamento de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa (UAL) não hesita em apontar um potencial ganhador: "Tendo em conta estes fatores, apesar da incerteza e da imprevisibilidade que caracterizam a situação atual, é clara a tendência para que o reordenamento geopolítico mundial seja favorável à China. Numa fase inicial, os passos falhados do regime chinês puseram em causa a posição e a imagem internacional da China e também o "papel dirigente" do Partido Comunista Chinês. Porém, com as vigorosas medidas que implementou, Pequim começou a controlar a epidemia, ao mesmo tempo que noutros países e regiões, com destaque para a Europa e, entretanto, os EUA, a pandemia alastrou, expondo a negligência e a impreparação dos respetivos sistemas e lideranças, de uma forma ainda mais grave e evidente do que na China. Como que em 'efeito boomerang', a expansão global da pandemia, a par, sobretudo, da incapacidade e da falta de solidariedade entre países europeus e dos erros sucessivos e persistentes da administração Trump e das autoridades americanas, passou a ser rápida e habilmente aproveitada por Pequim para posicionar a China como referência e líder global na resposta à pandemia: promove o seu próprio sistema, "lições apreendidas" e medidas; fornece ajuda e assistência material a muitos outros países - ajudando até outros Estados a organizar os seus sistemas de resposta - da Ásia-Pacífico ao Médio Oriente, África e América Latina, com destaque para a Europa perante a paralisia da UE e a incapacidade e a falta de solidariedade de outros Estados europeus; e retomou a produção em larga escala e a exportação para todo o globo de bens cruciais ao combate ao covid-19 como ventiladores e materiais de proteção".

De facto, de início a China pareceu desvalorizar a ameaça do vírus identificado em Wuhan, cidade de 11 milhões de habitantes onde modernas indústrias coexistem com mercados de animais vivos, e não faltaram pressões sobre os médicos que denunciaram a hipótese de uma nova epidemia transmitida por morcegos ou afins, do género da SARS, surgida em 2003 na província de Cantão.

Mas a liderança em Pequim foi rápida a detetar contestação na sociedade, e muito também nas redes sociais apesar do controlo feito, e apressou-se a demitir os dirigentes locais e regionais. Consciente do enorme desafio que o país estava a enfrentar, o presidente Xi Jinping avançou com medidas extremas de confinamento, em especial em Wuhan, mas também em toda a província de Hubei, com 58 milhões de habitantes, quase tanto como França ou Itália. Hoje, a reação enérgica chinesa é elogiada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e imitada, em doses variáveis, por dezenas de países, apesar de se estar longe de uma verdadeira cooperação global e as rivalidades que vinham de trás não terem desaparecido apesar de o vírus ter já causado mais de 20 mil mortes em todo o planeta.

Acrescenta Luís Tomé que "a guerra comercial, a 'diabolização' e a desconfiança em relação à China promovidas pela administração Trump limitam certos esforços coletivos para conter a pandemia e uma ação global mais concertada. Por outro lado, o covid-19 expôs as vulnerabilidades do mercado internacionalizado, das cadeias de produção e distribuição e dos mecanismos de regulação, bem como da quase livre circulação de pessoas, tudo contribuindo para questionar alicerces profundos da globalização tal como a conhecemos. A globalização não terminará, mas ressurgirá desta crise à mercê de novas dinâmicas, lideranças e influências. Por exemplo, com a saúde e a segurança dos seus cidadãos em jogo, certos países podem decidir bloquear as exportações ou apreender suprimentos críticos, mesmo que isso prejudique os seus aliados e vizinhos. Tal tornaria a 'generosidade' e a capacidade de fornecimento de outros num instrumento ainda mais poderoso de influência para os Estados que o conseguirem ou optem por fazer - e é o que a China já faz, enquanto os Estados Unidos ainda estão a adaptar-se, escondidos debaixo dos seus lençóis". O académico refere-se aqui à publicidade que Pequim tem feito das suas ofertas de material médico aos países agora em situação mais grave, como é o caso da Itália, valendo-se de ter conseguido controlar o vírus. Também a Portugal têm chegado abastecimentos chineses para o combate ao covid-19, seja por oferta da embaixada chinesa seja por encomenda do governo português a empresas da China, que são gigantes nesta área.

Apesar de a China estar em situação de vantagem neste momento em relação aos Estados Unidos, pelo menos pela fase em que se encontra no combate ao vírus, o nervosismo pela incerteza atual chegou a fazer que um porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros acusasse os militares americanos de terem infetado a população de Wuhan, criando mais tensão, com o embaixador chinês em Washington, Cui Tiankai, a ter de vir a público dizer que são "loucas" as teses conspiratórias. Quase em retribuição, Trump anunciou que iria deixar de chamar "vírus da China" ao covid-19, cedendo por fim às críticas gerais.

Luís Tomé sublinha que, "aparentemente, a pandemia e a crise provocada pelo covid19 são um novo tónico ao 'período de oportunidades' para a China propalado por Pequim. E se desta crise global a China sair como referência e líder e os EUA forem vistos como incapazes ou abdicando de o fazer, essa perceção pode alterar substancialmente a posição de China e EUA na geopolítica global e na disputa pela liderança no século XXI".

O professor da UAL destaca ainda, numa perspetiva geopolítica, outras três implicações possíveis da epidemia que desde meados de março passou a ser considerada pela OMS pandemia: "Primeiro, levará muitos Estados a reforçarem os sistemas de saúde e a aumentarem os seus orçamentos nessa área, eventualmente, em detrimento da Defesa (ainda que a preparação e a resposta face a pandemias passe a ser uma prioridade de segurança nacional), o que pode acarretar alterações substanciais na situação estratégica entre potências e em certas regiões, bem como a colocar em causa certos compromissos e relações anteriores (como na NATO e nas relações transatlânticas e intraeuropeias), com consequências imprevisíveis; segundo, dependendo do impacto da crise e das responsabilidades atribuídas aos respetivos sistemas e líderes, a pandemia pode favorecer certos regimes mais autocráticos (China, Coreia do Norte ou mesmo Rússia) ou, ao invés, fragilizar determinados autoritarismos (como no Irão), do mesmo modo que pode fazer questionar certos modelos e procedimentos mais democráticos. Finalmente, o saldo final da experiência do covid-19 afetará também o papel de certos atores não estatais, designadamente de conglomerados da indústria farmacêutica e de organismos internacionais da área da saúde, só não se sabendo ainda se em seu favor ou negativamente."

 

Carlos Gaspar, investigador do IPRI-Nova, é mais duro com o comportamento da China nestes últimos cinco meses, ao ponto de dizer que "só por uma ironia macabra seria possível imaginar que a epidemia provocada pelo 'vírus de Wuhan' (o nome de batismo dado pelo Global Times de Xangai ao covid-19) e pela incapacidade do regime comunista em controlar os seus efeitos a tempo estivesse na origem de uma projeção acrescida do modelo autoritário chinês. É impressionante a arrogância com que a imprensa chinesa passou a falar do 'vírus italiano', ao mesmo tempo que a China envia as suas equipas médicas e os seus equipamentos para assistir as autoridades italianas a enfrentar a catástrofe cuja origem ninguém pode esquecer".

Contudo, acrescenta o autor do recente livro O Regresso da Anarquia, sobre a competição entre os Estados Unidos, a Rússia e a China e o seu impacto na ordem internacional, "a epidemia do novo coronavirus é uma tragédia que não muda nada de significativo na balança internacional, mas pode acelerar um certo número de tendências fortes que dominam a política internacional desde a grande recessão de 2008, que precipitou o recuo estratégico dos Estados Unidos, a crise do euro e o declínio da ordem liberal internacional, por um lado, e abriu as portas à ofensiva das potências revisionistas, incluindo a anexação da Crimeia pela Rússia ou o programa de expansão da China com as suas 'Rotas da Seda'". Ou seja: "Nesse quadro, a epidemia pode selar o fim da globalização e consolidar a centralidade da competição entre os Estados Unidos, a China e a Rússia, cuja lógica é o regresso do protecionismo regionalista. A desglobalização, mais do que a desocidentalização, é a tendência mais forte na conjuntura e pode completar o desacoplamento tecnológico entre as duas maiores economias mundiais - a economia americana e a economia chinesa. A epidemia, de resto, tem sido acompanhada por uma escalada na confrontação política e ideológica nas relações entre os Estados Unidos e a China, que vai continuar no centro da política internacional e forçar as outras potências a tomar partido."

Esta última afirmação é válida para bom número de países, que hesitam entre velhas alianças e novas amizades, como é o caso, por exemplo, das Filipinas, mas pode também aplicar-se a países europeus como Portugal, membros da NATO mas mesmo por isso, segundo a administração Trump, pressionáveis para não aceitarem a tecnologia 5G da Huawei, uma empresa chinesa privada, que garante não estar submetida a diretivas governamentais.

Carlos Gaspar, que conhece bem a China por ter acompanhado as negociações sobre a transferência de Macau quando trabalhou com os presidentes Ramalho Eanes, Mário Soares e Jorge Sampaio, chama também a atenção para a forma como este coronavírus pôs a nu o excessivo peso da economia chinesa na economia global, não só por ter o segundo maior PIB nem por ser o maior exportador, mas sim pelo monopólio que tem no fabrico de vários bens: "A epidemia revelou os perigos da interdependência das 'cadeias de valor' do 'mercado global'. Nenhum Estado soberano pode continuar a aceitar depender de Estados terceiros em domínios estratégicos e, bem entendido, os medicamentos e os equipamentos de saúde, cuja produção é dominada pela China, são produtos estratégicos. A França e a Alemanha reconhecem as vulnerabilidades europeias, mesmo se nem todos reconhecem a impossibilidade de integrar o 'rival sistémico' como um 'parceiro responsável' na velha ordem liberal das democracias, onde o regime autoritário chinês não tem lugar. O regresso dos critérios políticos e estratégicos ao comando da economia é uma mudança crucial, que pode tornar possível a reindustrialização da Europa, para recuperar a sua competitividade em domínios críticos: um antigo primeiro-ministro chinês disse que a China era a fábrica do mundo e a Europa o museu do mundo (e os Estados Unidos a vanguarda do mundo). Talvez o 'vírus de Wuhan' ainda possa salvar a Europa desse triste destino e dar à integração europeia uma última oportunidade para dar significado à 'soberania europeia', valorizando as soberanias nacionais dos Estados membros."

O investigador do IPRI considera ainda que "a desglobalização e a regionalização abrem a possibilidade de uma nova convergência entre a Europa e África: faz mais sentido investir a fundo na industrialização do continente vizinho do que exportar capitais e tecnologia para a China e existem bons argumentos para reconstruir uma interdependência euro-africana, depois de terem ficado demonstrados os malefícios de uma dependência excessiva em relação à principal potência asiática, que começa a assumir a sua estratégia como uma grande potência internacional e cujos objetivos incluem separar os Estados Unidos e a Europa Ocidental."

Curiosamente, esta ideia de aposta em África pelos 27 foi defendida numa entrevista já neste ano ao DN pelo ministro dos Assuntos Europeus da Itália. Defendeu Enzo Amendola, e deu assim título ao artigo, que "a irmã para o desenvolvimento europeu neste século será a África".

 

América e as dificuldades de Trump

 

Tiago Moreira de Sá, professor da Universidade Nova, que prevê que a nível global, a haver complicações para os Estados Unidos, estas se devam sobretudo à questão económica, olha sobretudo para o impacto do coronavírus na sociedade americana, nomeadamente a debilidade do país por ausência de um sistema universal de saúde, como existe na Europa e no vizinho Canadá. E que isso influenciará as presidenciais previstas para novembro deste ano.

Mas não acredita que seja por causa do covid-19 que a matriz americana seja posta em causa: "Nada - nem a crise do coronavírus, nem um atentado terrorista (como o 11 de Setembro de 2001), nem uma guerra - consegue alterar a matriz fundacional dos Estados Unidos. É um país criado pela aplicação prática da ideia de liberdade individual e da soberania do povo. As duas estão presentes desde a fundação e têm a sua raiz no puritanismo, que é toda uma doutrina religiosa, mas também uma teoria democrática e republicana. Tocqueville escreveu no livro Da Democracia na América que em lado algum o princípio da liberdade foi tão inteiramente aplicado e que na América io povo reina sobre o mundo político americano tal como Deus sobre o universo. É certo que houve na história do país certos momentos críticos - a guerra civil, as duas guerras mundiais, o macarthismo - em que houve restrições à liberdade, mas não só nenhum deles conseguiu destruir as ideias fundadoras da América, como, depois deles, elas saíram mais fortes."

Mas se a matriz resiste, já tradições como as primárias estão em risco, admite o autor de uma história das relações diplomáticas entre Portugal e os Estados Unidos. "O coronavírus está a afetar as eleições primárias, o que é complicado no Partido Democrata, uma vez que nos republicanos não há adversários sérios a Donald Trump. Já houve primárias canceladas, como por exemplo no Ohio, um estado muito importante para medir a aceitação dos candidatos entre os chamados eleitores de 'colarinho azul' na 'cintura da ferrugem', que em 2016, na eleição presidencial, deram a vitória a Trump. Acresce que quase sempre quem ganha o Ohio é eleito presidente dos Estados Unidos. Se isto persistir e não houver condições para realizar as restantes primárias o processo de escolha do candidato a presidente nos democratas pode complicar-se bastante, não sendo inclusive de excluir a hipótese de tudo se decidir numa 'convenção disputada', o que acontece quando nenhum candidato consegue a maioria dos delegados. Para já, o adiamento das primárias nos democratas está a ter uma consequência: o adiamento da desistência de Bernie Sanders. Mas estou convencido de que ele vai desistir em breve, para deixar o partido virar-se 'para fora' e enfrentar o verdadeiro adversário: Donald Trump. Caso contrário, isto é, se ele não desistir em breve, vale a pena questionar os verdadeiros motivos da agenda de Sanders", sublinha Tiago Moreira de Sá.

No seu estilo errático - há quem diga flexível - Trump tem minimizado a pandemia e defendido que a economia não pode ser deixada para segundo plano. Mas ao mesmo tempo tem aberto os cordões à bolsa para reagir ao covid-19, que durante semanas insistiu em chamar de "vírus da China". O problema é que os excelentes números da economia que suportavam as esperanças de reeleição de Trump vão desaparecer, e o desemprego deverá atingir os 12% antes da ida às urnas, enquanto a quebra no PIB deverá ser superior à da crise de 2008, segundo as previsões do Goldman Sachs.

Tiago Moreira de Sá, coautor de Donald Trump, o Método no Caos , faz a seguinte leitura das possibilidades do magnata do imobiliário que chegou a presidente em 2016 sem nunca ter tido cargos políticos ou militares, uma novidade nos mais de dois séculos de democracia americana: "Não só Trump revelou ao longo de toda a sua vida uma extraordinária capacidade de se adaptar às circunstâncias, como essa adaptação é uma das chaves do sucesso do chamado populismo, que consiste, no essencial, em perceber o sentimento popular e dizer ao povo o que o povo quer ouvir. Essa capacidade de adaptação foi uma das chaves do seu triunfo em 2016, quando percebeu, antes de todos, que o sentimento da população tinha mudado, por várias causas, mas sendo a causa próxima as 'ondas de choque' do colapso financeiro de 2008 e da 'grande recessão' que se lhe seguiu, o que gerou uma rutura definitiva entre o povo e a elite. Se somarmos a isto os efeitos da globalização, dos grandes acordos de comércio livre, a imigração ilegal descontrolada e as guerras inúteis no 'grande Médio Oriente', percebemos a agenda de Trump e o seu sucesso: o discurso antielites de Washington, contra 'as falsas promessas da globalização', protecionista, dura com a imigração ilegal, nacionalista e antimultilateralista."

E acrescenta: "É certo que ele tem revelado ao longo de décadas um certo número de convicções. Desde finais dos anos 1980 que tem insistido persistentemente em três temas: na crítica dos aliados permanentes dos Estados Unidos, por serem free riders, indo à boleia da segurança oferecida pela América e não pagando por ela; na crítica dos grandes acordos de comércio livre, que, segundo ele, leva empresas e empregos para fora da América, para países que são 'batoteiros comerciais'; na tolerância dos regimes não democráticos e, mais tarde, dos líderes políticos fortes, como, por exemplo, Vladimir Putin. Mas, mesmo nesses casos, soube adaptar-se. No final de 1980, os aliados alvos das críticas eram o Japão e a Arábia Saudita, dois Estados com os quais tem hoje a melhor relação possível. Na parte comercial, o alvo passou a ser a China. Já durante a crise do coronavírus revelou uma grande capacidade de adaptação, começando por desvalorizar o seu alcance, para depois chegar ao ponto de designar o vice-presidente Mike Pence para liderar a luta contra a o vírus. Mas, em última análise, por mais capacidade de adaptação que tenha, o coronavírus não vai facilitar nada a vida a Donald Trump, podendo mesmo ser o seu 'momento Lehman Brothers' (recorde-se que a queda do Lehman Brothers, símbolo do colapso financeiro de 2008, custou a eleição presidencial aos Republicanos). Ao nível da saúde, os EUA podem vir a tornar-se no país do mundo com mais casos, e isto, em parte, devido à abordagem inicial da atual Administração. Mas, o que pode ser mesmo decisivo, são as consequências ao nível económico. Isto não é culpa de Trump e, por muito que faça, parece impossível evitar nova "grande recessão", ou mesmo uma "grande depressão". Mas quem está no poder acaba sempre por ser culpado pelo povo quando este tem de sofrer".

 

Para Diana Soller, investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI)-Nova, em primeiro lugar, esta crise poderá acelerar a transição de poder em curso - que vem de trás e tem visto o Ocidente ceder posição no top 10 das grandes economias a países emergentes ao ponto de a China ser hoje número dois só atrás dos Estados Unidos - pois "a forma como os Estados mais poderosos do sistema internacional estão a fazer face ao que se está a passar vai determinar o seu potencial de liderança internacional. Da mesma forma, pode haver um enfraquecimento de alguns Estados que os tornará menos competitivos internacionalmente quando a pandemia começar a dissipar-se". E para a académica, "até agora, a China tem sido o Estado mais eficaz neste sentido. Apesar, e nunca é demais sublinhar, de o vírus ter começado na China e as autoridades o terem escondido durante cerca de dois meses, Pequim (e também, em menor medida, Moscovo) têm-se empenhado em oferecer apoio internacional aos Estados mais afetados pela pandemia. Esta condição pode ter impacto na forma como a liderança chinesa é percecionada internacionalmente. E pode ter consequências graves, porque independentemente da ajuda internacional a China é um Estado com um projeto internacional autoritário como se viu na forma como geriu a pandemia no seu próprio país - sem grande consideração pelas vidas da população dentro e fora da China."

Diana Soller, que é junto com Tiago Moreira de Sá, autora de Donald Trump, o Método no Caos , considera que "os Estados Unidos estão a ter muita dificuldade em gerir a pandemia internamente. Donald Trump está a ter as mesmas dificuldades que outros governos populistas. Foi eleito com a promessa de encontrar soluções simples para problemas complexos e vai ter muitos problemas para conseguir gerir as expectativas dos norte-americanos. Internacionalmente, não está a haver qualquer esforço dos EUA em retomar o seu papel de líder internacional contra a pandemia. Da mesma forma que a China tenderá a beneficiar do seu esforço internacional para fazer face à pandemia - apesar das suas fortes responsabilidades na sua disseminação -, os Estados Unidos também tenderão a sofrer as consequências da falta de liderança internacional".

A forma como o covid-19 irá afetar os Estados Unidos pode ter também efeitos nas eleições presidenciais, acrescenta Diana Soller, já que "Trump partia com grande vantagem, mas a gestão da crise pode mudar a perceção norte-americana da sua liderança". E uma eventual derrota de Trump, depois da surpresa que foi o seu triunfo frente a Hillary Clinton em 2016, significaria não só uma mudança na América, mas também uma mudança na relação da América com o mundo, o regresso do multilateralismo praticado por Barack Obama e na realidade pelos seus antecessores, mesmo quando do Partido Republicano, pois Trump é excecional na sua defesa do "América Grande de Novo". A vencer Joe Biden, que foi vice de Obama, a Casa Branca "tenderá a ter outra perspetiva do papel internacional dos Estados Unidos, nomeadamente no que respeita à liderança internacional da pandemia e noutros assuntos. Também tenderá a reunir à volta dos Estados Unidos as democracias ocidentais, retomando o modelo de comunidade atlântica (e democrática) interrompido por Donald Trump. Assim, o resultado das eleições norte-americanas vai ser central na ordem internacional pós-coronavírus e nos anos que se avizinham. Trump tenderá a isolar-se, Biden a exercer liderança internacional", afirma Diana Soller.

 

Para onde vais Europa?

 

Comentando o que parece ser o cada um por si nos 27, poucas semanas depois do Brexit, a investigadora do IPRI-Nova Diana Soller nota que no espaço europeu "os Estados substituíram a União Europeia no combate à pandemia, numa situação sem precedentes. E a ajuda internacional aos Estados europeus veio essencialmente da China e da Rússia. É certo que passado o pico da pandemia, e especialmente quando começarem a sentir-se as profundas dificuldades económicas que vamos atravessar, os governos nacionais terão muitas dificuldades em manter o grau de aprovação que têm agora. Mas é possível que se gere uma relação de maior confiança entre as populações nas soluções nacionais. Há três consequências imediatas: a primeira são as crises políticas que poderão gerar-se no seio dos países. A segunda é que, dessas crises políticas poderão sair novos governos de pendor muito mais nacionalista, incluindo as suas derivações extremistas e populistas. A terceira é que a União Europeia vai passar por um período de ameaça existencial, pelas duas razões anteriores e por ter sido quase irrelevante no combate à pandemia. Será necessário um grande esforço das elites europeias para darem uma resposta firme e solidária à crise económica que nos espera. Poderá ser a única forma de sobreviver à pandemia".

A chegada de um avião a Itália com assistência médica chinesa, incluindo material mas também especialistas no tratamento do covid-19, foi amplamente divulgada pela imprensa chinesa, e também pela russa. Aliás, foi um antigo ministro dos Negócios Estrangeiros italiano, também ex-vice-presidente do Parlamento Europeu, Franco Fratinni, que a televisão russa RT citou para suportar o título "A UE deixou a Itália praticamente sozinha a lutar contra o coronavírus", artigo que noticiava também a chegada de ajuda enviada por Moscovo a uma base próxima de Roma. Isto numa altura em que, por razões diferentes, Alemanha e França travavam qualquer exportação de máscaras cirúrgicas, tão em falta na Itália.

E teve de ser a Comissão Europeia em Bruxelas a alertar para a violação das regras do mercado comum, apesar de as motivações tanto francesa (controlo do Estado para evitar especulação com os preços) como alemã (garantir fornecimento à população em risco) fossem meritórias do ponto de vista nacional e procurassem salvar vidas - agora Alemanha e França juntas já deram mais máscaras a Itália do que a China. O encerramento de fronteiras, decidido por vários países dos 27 sem consultar os vizinhos (não foi o caso de Portugal e de Espanha) foi simbolicamente a mais triste celebração dos 25 anos do espaço Schengen, sinónimo de livre circulação para os europeus, com um lisboeta a poder conduzir o carro até Helsínquia, enquanto agora, culpa da pandemia, nem a Badajoz pode ir.

Bernardo Ivo Cruz, académico que se destacou nos últimos tempos como editor do The London Brexit Monthly Digest, mostra-se preocupado sobretudo com o pós-pandemia, temendo tentações autoritárias. "Tal como o próprio vírus, a ciência não tem ideologia: o isolamento social necessário para combater a pandemia pede instituições públicas fortes e com capacidade de substituírem mecanismos do mercado. O reforço do papel dos Estados exige o reforço dos mecanismos de controlo democrático das instituições. Não podemos permitir que a democracia seja uma das vítimas desta pandemia." Ao mesmo tempo, o antigo subsecretário de Estado dos Negócios Estrangeiros lamenta o fechar dos países sobre si próprios, pois "muitos acreditámos que seria necessária uma ameaça comum para criar laços de cooperação e solidariedade entre as nações que gerassem um verdadeiro multilateralismo. A crise atual parece desmentir essa ideia."

 

A cimeira europeia extraordinária desta quinta-feira, realizada por videoconferência, assim como todas as medidas prometidas de estímulos financeiros e de flexibilidade orçamental para recuperar a economia dos 27 é para já um sinal semipositivo apesar das divergências óbvias, mas cuja concretização só se verá mais para a frente, dependendo da vontade política de cada líder e do próprio contexto internacional. Itália e Espanha precisam de solidariedade urgentemente e estamos a falar de dois colossos da UE, com tremendo peso político.

Provando ser de uma fibra diferente da maioria dos seus pares, Angela Merkel dirigiu-se há dias aos alemães para estarem unidos no maior desafio "desde a Segunda Guerra Mundial" e tanto falou da necessidade absoluta de confinamento como da obrigação de todos os setores da sociedade serem solidários para sair da dupla crise, a sanitária e a económica. Recordando-se como a chanceler liderou a União Europeia durante a anterior crise, talvez não seja má notícia que se ergam vozes a defender que se recandidate a um quinto mandato em 2021.

 

O choque não é entre democracia e ditadura

 

"Há que ter cautela em tirar conclusões apressadas de natureza geopolítica sobre as consequências da pandemia originada pelo coronavírus. Há muitos elementos por identificar ainda. Não vejo razões para o regime político passar a servir de modelo para outros países. Nem vejo que a China esteja empenhada nisso. Pequim nunca tentou alterar os regimes políticos dos países com que se relaciona económica e politicamente. Nunca tentou fazer operações de mudança de regime. Ao contrário do seu opositor, não tenta espalhar nem promover uma ideologia política. Já o fez no passado, mas agora não. Vão longe os tempos em que a China apoiava movimentos de libertação no terceiro mundo", afirma Carlos Branco, major-general e investigador do IPRI-Nova, que não vê na concorrência acrescida entre Estados Unidos e China um confronto entre uma democracia e uma ditadura, mas sim uma luta de poder, com Pequim a esforçar-se por ganhar clientelas (dai a estratégia Uma Faixa, Uma Rota, e agora toda esta solidariedade no combate ao vírus), mas a vantagem ainda a ser grande para Washington, com a produção de riqueza americana ainda bem superior, tal como a capacidade militar, apesar da extraordinária multiplicação do PIB chinês 175 vezes desde que Mao Tsé-tung proclamou a República Popular há 70 anos (na verdade, o crescimento deu-se nos últimos 40 anos, mérito de Deng Xiaoping e sucessores, já depois da morte de Mao).

Acrescenta ainda o militar, com experiência na ex-Jugoslávia, no Médio Oriente e no Afeganistão, que "as democracias dão-se bem com Estados autoritários, desde que sejam submissos e a relação seja de soma zero. Quando os Estados autoritários deixam de ser submissos, as democracias deixam de se dar bem com eles. Isso acontece também com democracias que não sejam submissas. A América Latina está cheia de exemplos desses, assim como o Médio Oriente. Ao contrário daquilo que é propalado ardentemente em muitos fóruns, a dualidade do mundo atual não é democracia vs. autoritarismo. O que está em causa é a luta pelo poder na ordem internacional. Se a China fosse uma democracia comportar-se-ia do mesmo modo. Os Estados Unidos já fizeram o mesmo ao Reino Unido, e eram ambas democracias. A questão central é perceber como se vai operar essa transição de poder: violenta ou pacífica. E quem terá a iniciativa confrontacional. Esta é a questão central".

Carlos Branco também evita dar demasiada importância à nova diplomacia da máscara (por analogia à tradicional diplomacia do panda, em que a China oferecia aos líderes estrangeiros o animal quando queria melhorar relações). "Os europeus não vão trocar a aliança com os EUA por um alinhamento político com a China ou com a Rússia. A diferença de poder entre os EUA e a China ainda é imensa. Isso mesmo foi reconhecido publicamente pelo presidente Xi Ji Ping, aconselhando realismo e parcimónia nos excessos de confiança dos seus concidadãos sobre o poder do país."

Acrescenta o major-general que "o sucesso chinês na gestão da epidemia do coronavírus não tem que ver com o regime, mas com a capacidade do Estado, a oportunidade da resposta e a proatividade das lideranças. Não é verdade que os Estados autocráticos tenham mais sucesso no controlo da epidemia do que as democracias. Não é empiricamente correto estabelecer uma relação de causa-efeito entre o regime político e a eficácia da resposta. Há, no entanto, alguns aspetos que merecem observação atenta. O impacto que a crise terá na ordem política interna dos Estados afetados, sobretudo naqueles em que a resposta dos seus dirigentes não foi adequada. Não é de excluir uma vaga de contestação. A pandemia pode ter impacto na globalização e no futuro do comércio internacional, conduzindo ao aumento do protecionismo, reforçando uma tendência já em curso, quando as economias industrializadas começaram a perceber que não controlavam a globalização nem eram as principais ganhadoras".

Carlos Branco, reconhecendo a força da América, não deixa, porém, de notar que esta crise mostrou a debilidade causada pela ausência de um sistema de saúde público. Mas considera que "a maior debilidade reside na falta de proatividade na resposta do sistema, da qual Trump é o principal responsável. A probabilidade de esta falta de liderança ter uma consequência desfavorável na campanha eleitoral de 2020 é muito grande. Quem se arrisca a ser um dos grandes perdedores da epidemia é o presidente Trump. O efeito vai ser demolidor nas suas pretensões à reeleição. Os seus opositores não lhe perdoarão a negligência com que enfrentou o problema. A bolsa de valores afundou-se e a economia americana vai entrar em declínio".

 

O tango pode dançar-se a três ou até a quatro?

 

Com a América debilitada pelo vírus e pela inação de Trump, e talvez com outro líder eleito em novembro mais na linha tradicional de alinhamento com a Europa, levanta-se a questão das relações da América também com a Rússia, por agora aliada de conveniência da China. Ora, sobre a Rússia de Putin, que se prepara para ficar mais uma década ou mais no poder graças a uma revisão constitucional, e o choque desta com o Ocidente, Carlos Branco tem uma visão um pouco contracorrente: "A Rússia não se tenta fechar. Quem a ostracizou foram os EUA secundados pelos seus aliados europeus. Bem gostava a Rússia de ter relações normais com a Europa. Moscovo não abraçou com alegria as sanções nem o impedimento do financiamento às suas empresas pelo setor bancário europeu. A tentativa de tornar a Rússia um Estado pária e a demolir económica e politicamente causou alguma mossa, mas longe daquilo que se pretendia e estava planeado. Virou-se para outras regiões do globo, em primeiro lugar para a Ásia. A lista de compradores do seu armamento comprova que a Rússia não se fechou nem foi isolada. O mundo deixou de ser eurocêntrico. São muitos os exemplos da nova orientação russa, começando pelo paulatino reforço dos seus gasodutos para leste."

E, de facto, Moscovo, na aparência lidando com uma economia do tamanho da italiana, conta com instrumentos de grande potência, sejam militares, a começar pelo arsenal nuclear e a acabar na capacidade de intervir em países fora da sua vizinhança como é o caso da Síria e também o da República Centro-Africana, seja económicos, como o fez agora com o petróleo, com efeitos diretos na rentabilidade da produção americana.

Segunda maior economia mundial, se as contas forem feitas a 27, a União Europeia continua a ter algumas dificuldades em justificar o nome, como se viu na falta de ação concertada frente à pandemia, mas Carlos Branco sublinha que "é preciso ter novamente cautela na abordagem deste problema. Vendo a resposta apenas da perspetiva de proteção civil (excluindo medidas de ajuda económica que foram concertadas multilateralmente), o Mecanismo de Proteção Civil da UE foi desenhado para reforçar a cooperação entre Estados membros no domínio da proteção civil, quando a escala da emergência supera a capacidade de resposta de um país, não quando supera a capacidade de todos os membros, ainda por cima quase simultaneamente. Quando isso acontece o Estado pode pedir ajuda à UE através deste mecanismo. Ora o mecanismo não foi desenhado para responder a um desafio da dimensão da epidemia, em que "todos" os países necessitavam de ajuda em simultâneo, os recursos disponibilizados pelos países eram escassos, e não havia excedentes para libertar. O facto de a China já ter ultrapassado o problema, para além da sua óbvia capacidade industrial, permitiu ajudar. Tal seria impossível aos EUA porque estava a tentar encontrar soluções para resolver os seus próprios problemas".

Quanto ao encerramento de fronteiras, no mundo, mas o militar e investigador não mostra grande cuidado. "Não nos devemos preocupar com o regresso das fronteiras. É uma medida necessária, mas de caráter temporário. Quando a epidemia estiver debelada Schengen voltará à normalidade. Não me aflige, nem tenho receios quanto a essa matéria. Nem os cidadãos devem ter", afirma, numa mensagem de otimismo.

 

É a economia que no final de contas vai contar

 

embaixador Francisco Seixas da Costa considera ser "prematuro tentar retirar ilações quanto a uma eventual alteração da relação geopolítica de forças à escala global, por virtude desta crise. A meu ver, tudo vai depender bastante mais do saldo económico final, isto é, da capacidade relativa de recuperação das grandes economias, do que dos impactos humanos da tragédia. Estes podem levar, no curto prazo, a movimentos emocionais de opinião, que não deixarão de se refletir na sobrevivência de alguns governos. A reeleição de Trump está nesta equação. Mas o importante vai ser observar como é que, no prazo de um ano, China, América e União Europeia estão a sair disto".

O diplomata, que foi embaixador junto da ONU, em Nova Iorque, e também na França e no Brasil, analisa as possíveis evoluções geopolíticas de um mundo pós-vírus: "A China é uma incógnita. Sendo uma ditadura, pode controlar melhor o seu processo produtivo, mas sendo uma potência exportadora por essência, é muito dependente do crescimento dos seus parceiros comerciais a ocidente. E o estado destes, como consumidores, vai depender de vários fatores. Já a capacidade de adaptação americana é imensa e, a menos que ali ocorra um cataclismo que não consigo prever, a experiência mostra-nos que a flexibilidade da América é sempre a que permite maiores e mais rápidas taxas de recuperação do crescimento. As razões são estruturais e radicam na sua cultura empresarial, pouco limitada pelas preocupações sociais que tolhem a Europa no seu 'modelo'. Mas assentam, essencialmente, na confiança que os mercados sempre sentem nos EUA, como economia liderante do capitalismo mundial. Resta uma outra questão. Será que, no termo de tudo isto, com toda a 'boa vontade' que a China está a demonstrar para ajudar os países vítimas da pandemia, muito daquilo que eram as crescentes resistências, no mundo ocidental, face à projeção geopolítica chinesa, não acabarão por se diluir? É aqui que a Europa pode ter uma palavra decisiva. Se a sua fragilidade, no termo desta crise, não conseguir ser compensada com a restauração de uma relação mais substantiva e de confiança com os EUA (por exemplo, se Trump ganhar), manter-se-á a ideia, que vinha a fazer o seu caminho, de tentar travar o caminho à China nos variados setores em que esta estava a 'entrar' no seu mercado? O 5G da Huawei tem caminho aberto? Os investimentos da Nova Rota da Seda têm via livre? Não deixaria de ser irónico que um vírus originado na China acabasse por ser um reforço para o seu poderio. Os maluquinhos das teorias da conspiração teriam aqui o seu grande momento de glória especulativa."

 

Victor Angelo, antigo alto quadro das Nações Unidas, é outra voz cautelosa: "Não tenho uma bola de cristal nem pratico a arte da adivinhação, uma disciplina muito popular em certos meios intelectuais. Por outro lado, falta-nos ainda conhecer uma variável fundamental, que é a da duração da fase aguda da crise, a fase em curso. Se se prolongar por vários meses, o impacto será profundo, sobretudo nas áreas da economia e dos rendimentos das famílias. Por isso, as duas grandes preocupações atuais, que devem ser tratadas em simultâneo, são o combate à pandemia e o evitar a falência das empresas e das famílias. Os governos serão avaliados pela maneira como venham a responder a esse tandem de questões. É aí, por exemplo, que se joga a eleição presidencial americana."

Com toda uma carreira ao serviço das Nações Unidas, sendo equiparado a secretário-geral adjunto, Victor Angelo sublinha como o vírus pode reforçar os nacionalismos e assim abalar tudo o que são entidades promotoras do multilateralismo, seja a UE seja as Nações Unidas. Não por acaso, o secretário-geral António Guterres fez um apelo desesperado para que cessassem os conflitos e os países se unissem contra uma pandemia que, como qualquer da sua natureza, não reconhece fronteiras.

"Em termos geopolíticos, deve ter-se presente que a crise fez renascer o sentimento nacional, a convicção de que as fronteiras dos Estados protegem os cidadãos. Nacionalistas ferrenhos e políticos demagogos procurarão investir nesse sentimento e sacar dividendos da coisa. Esse poderá ser um dos maiores perigos que teremos de enfrentar no período pós-coronavírus. A demagogia ultranacionalista, o aproveitamento do medo pelos populistas. A partir daí, estará em perigo toda a arquitetura multilateral e intergovernamental, sobretudo o sistema das Nações Unidas e a União Europeia. Como também ficará ameaçada a cooperação internacional, quer no domínio humanitário, de ajuda aos refugiados, por exemplo, quer no campo do desenvolvimento e da luta contra a pobreza", diz Victor Angelo.

Que acrescenta: "Um outro aspeto particularmente importante terá que ver com a competição pela hegemonia entre a China e os Estados Unidos. Essa disputa acentuar-se-á e marcará de modo determinante a agenda das relações internacionais. A China já entrou num período de recuperação económica e política, enquanto os Estados Unidos se afundam na crise e se emaranham numa resposta caótica. Os chineses ficam, assim, em vantagem e vão tentar tirar o maior proveito político possível desse desfasamento. Nomeadamente, na ajuda sanitária a outros países, como está a acontecer com a Itália e a Sérvia, para mencionar apenas dois países que pertencem a esferas geopolíticas próximas, mas distintas. Mas não só. A ofensiva diplomática e económica da China ganhará uma nova dinâmica e um outro nível de subtileza, de modo a ganhar terreno sem criar anticorpos."

 

Depois da China e da Europa, o desafio é americano

 

O vírus começou por matar na China e na Ásia Oriental, depois passou a matar na Europa, agora nos Estados Unidos a cifra de vítimas mortais já ultrapassa as mil, e a tendência é para subir ainda mais pois o país já é recordista de infetados, desafiando a capacidade de resposta da sociedade americana e sobretudo da administração Trump. E se o Reino Unido adiou eleições municipais e a Rússia um referendo constitucional, para já não passa pela cabeça de ninguém adiar as presidenciais americanas, aquelas que sagradamente se realizam na primeira terça-feira depois da primeira segunda-feira de novembro (neste ano calha no dia 3). Em risco está sim a reeleição de Trump, se bem que o presidente pode ainda revelar-se eficaz no combate à dupla crise sanitário-económica.

"A crise de saúde pública causada pelo novo coronavírus pode, de facto, levar o eleitorado americano a pensar duas vezes no modo como os americanos têm acesso à saúde e, porventura, influenciar as escolhas a fazer em novembro. Mas não me parece que esta questão venha a tornar-se decisiva em termos eleitorais. Poderá, quando muito, reforçar as ideias e as convicções que cada setor do eleitorado já tem acerca do assunto. Aos olhos do eleitorado de Trump, por exemplo, vai estar muito mais em avaliação o modo como o presidente enfrentar a crise e aí a estratégia de comunicação e as perceções do eleitorado poderão ser mais importantes do que uma reflexão generalizada sobre o sistema de saúde nos Estados Unidos", considera Luís Nuno Rodrigues, diretor do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE.

O historiador, doutorado por uma universidade americana, é também cauteloso sobre a pandemia como oportunidade para a China ultrapassar os Estados Unidos em termos de influência global: "Em termos internacionais, a história mostra-nos que eventos traumáticos e de grande impacto, como por exemplo a Segunda Guerra Mundial, podem funcionar como aceleradores de mudanças já em curso no sistema internacional. Sabemos que o momento unipolar dos Estados Unidos já terminou há muito, com a gradual ascensão da China. Mas poderá ser a crise que atravessamos o momento em a China de forma definitiva se tornará a potência decisiva, quiçá hegemónica, em termos internacionais? Não é prudente formular uma opinião sobre este assunto sem que seja com um ponto de interrogação no fim."

Há um século, no final da pandemia que surgiu no Kansas mas ficou conhecida como gripe espanhola, os Estados Unidos emergiram como primeira potência mundial. Mas antes tinha acontecido a Primeira Guerra Mundial, com os americanos a terem de vir salvar franceses e britânicos, apesar dos seus imensos impérios mundiais, do poderio alemão. É arriscado, como fizeram notar os académicos, prever demasiado. Basta olhar para as inúmeras publicações que há meses faziam a avaliação da década que se iniciava para perceber como ninguém pensava em vírus, a preocupação sobretudo na Europa era com a saída do Reino Unido, esse Brexit de que já pouco se fala.

 

Leonídio Paulo Ferreira, jornalista do Diário de Notícias e membro do Clube de Lisboa

Artigo publicado originalmente no DN a 26.03.2020

Imagens: Gráficos e figuras publicados com o artigo, Diário de Notícias