"A Europa está a fazer o mesmo jogo perigoso dos anos 20/30"

Entrevista a George Friedman, Professor, autor e analista de geopolítica

 

"Lugar feliz, um dos poucos na Europa” foi como o autor e analista político e fundador do site dedicado a análise geopolítica global, Geopolitical Futures, chamou a Lisboa, onde veio como orador principal da terceira edição das Conferências de Lisboa. Antes, fundou (1996) e liderou durante 20 anos um dos think tank mais influentes, a Stratfor. Doutorado em Ciência Política, chegou criança aos EUA, em 1949, nascido numa Hungria desfeita “pelo ciclo de carnificina de 1914-1945”. Por isso é levado pelo seu sentido pragmático a distinguir os pontos de vista “do meu lado americano” e “do meu lado húngaro”. É capaz de rir dos absurdos de raciocínio de cada um deles, porém a atitude é indisfarçavelmente americana.

 

Apesar destas décadas de paz, acha que a natureza das relações entre os países europeus nunca mudou?
A II Guerra Mundial não mudou a Europa, a ideia de uma economia europeia integrada fazia parte do Plano Marshall. O que os europeus inventaram foi Maastricht. A ideia de um sistema político no qual a democracia liberal controla as nações, mas no qual as nações são controladas por uma entidade. Desde a origem da UE que havia esta contradição e ela tornou-se visível em 2008. Esta ideia da Europa unida era uma fantasia que não se notou durante a prosperidade dos anos 90 e 2000. Maastricht foi uma ilusão fantástica que transcenderia o nacionalismo, mas, como podemos ver na Europa de hoje, não é verdade.

 

Quais são então as fragilidades que aponta à Europa? 
Um Estado pode levar um país à guerra, a UE não pode. Um Estado pode sujeitar toda a gente a uma política doméstica única, a UE não. É mais do que uma organização de Tratado e menos do que um Estado. É difícil dizer o que a UE representa, os europeus têm esperanças contraditórias do tipo “quero manter a língua e a autodeterminação portuguesa” e ao mesmo tempo “quero que uma entidade supranacional reconcilie todas as diferenças na Europa”. Como conciliar interesses gregos e alemães?

 

Os partidos alemães do centro perderam eleitores para a extrema-direita. Ilustra-o?
Sim, o Governo alemão tem princípios que incluem as migrações, por exemplo, e a população tem outra opinião. A Europa demoniza as pessoas com visões razoáveis alternativas e obriga-os a tomarem posições mais radicais. Nos EUA debate-se há mais de 400 anos o número de imigrantes que deve entrar no país e nunca houve o pressuposto (até há pouco tempo) de que quem se opõe à imigração é um monstro. Ou que os que querem mais imigração são idiotas. Na Europa marginalizam-se facilmente movimentos importantes. É um erro que os alemães estão a fazer.

 

A que chama um grande movimento?
Ao terceiro maior partido da quarta maior economia do mundo [Alternativa para a Alemanha, AfD]. É grande! Na Europa os sentimentos anti-imigração baseiam-se em classes sociais. Os apologistas da imigração não são os que vão viver com os imigrantes. E quando os que vão viver com os imigrantes se lhes opõem, chama-se-lhes fascistas. Chamar-se fascista a uma pessoa por esta razão pode levá-la a aceitar e dizer: “OK, sou fascista!” A Europa está a fazer o mesmo jogo perigoso dos anos 20/30. Está a achar que o meio de esmagar um movimento é desprezá-lo. Perante o surgimento dos fascistas, a esquerda liberal demonizou-os e eles tornaram-se demónios. 

 

Daí o que se seguiu ao ‘Brexit’? 
Exato, os que perderam disseram “as pessoas que decidiram o ‘Brexit’ não têm capacidade de fazer uma escolha destas”, o que apenas serve para radicalizar a situação. Perante a vitória esmagadora que Viktor Orbán obteve com regras que não criou, há manifestantes que insistem na repetição da eleição, alegando que ele terá roubado votos. O facto de metade do eleitorado húngaro apoiar Orbán não leva estes partidos a perceberem que devem formar uma plataforma capaz de persuadir aqueles eleitores a não votarem em Orbán. Isso é que seria razoável.

 

A Amnistia Internacional denunciou que a ameaça à liberdade de expressão na Europa já vai além da Hungria e da Polónia e chega a Espanha e França. 
Isso é inaceitável! Na Hungria há liberdade de expressão, como em Espanha e em França. Uma das derrotas da esquerda foi ter exagerado as ameaças que não existiam e não as que existiam. A ameaça na Europa é a completa alienação das classes mais baixas! É problemático achar-se a liberdade de expressão mais importante do que o sofrimento das classes mais baixas. É isto que abre o caminho à direita!

 

O populismo não tem responsabilidade na atual tensão?
Não sei o que é o populismo, só sei que é um grupo onde se incluem aqueles de quem se discorda. Populismo é uma expressão que refere o facto de haver uma maioria que votou contra nós, o que é obviamente errado porque eles deveriam ter votado como nós. [risos]

 

Donald Trump é considerado um populista, não?
Trump foi eleito pela classe que não beneficiou do comércio livre, que perdeu o emprego e viu declinar o seu estatuto social. A gente da finança e das tecnologias está satisfeita. Nos EUA, as pessoas que o New Deal e Roosevelt apoiavam e que emergiram como classe dominante são agora demonizados. Ao verem-se demonizados elegem pessoas como Trump. Isto é uma questão de classe. Trump foi eleito por Hillary Clinton e pela inabilidade desta em avaliar a situação social dos EUA.

E as consequências de Trump na cena internacional?
Ele tem feito muito pouco na política internacional. Disse muito, mas tem sido muito cauteloso e tem feito exatamente o que os liberais quereriam: tem negociado. O problema da Coreia do Norte teve origem com Obama, que nunca confrontou o facto de eles serem uma potência nuclear. Trump foi agressivo, mas ao fazer parecer que a guerra seria inevitável criou condições para a negociação. O Presidente americano não é todo-poderoso e não se deve ouvir o que Trump diz, é uma loucura, olhe-se antes para o que ele faz. Fez com a China o que os seus antecessores queriam e não conseguiram. Limitou as exportações deles para os EUA, as que violam as regras da Organização Mundial do Comércio e com isso encetou a negociação.

 

A Coreia do Norte quer realmente negociar? 
Presumimos que Kim Jong-un não é louco ainda que os media chamem loucos a quem não compreendem. Ele é um jogador muito sofisticado com dois objetivos, preservar o seu regime contra os EUA (que têm tendência a provocar mudanças de regime) e usar o armamento nuclear para reformular a península coreana. Kim não quer uma guerra nuclear, percebe que os EUA podem aniquilá-lo e também sabe que o futuro da Coreia não é fundamental para os EUA. O que o é, é garantir que a Coreia do Norte não tenha armas nucleares. Trump evitou toda a ação militar, permitiu aos sul-coreanos negociarem com o Norte e ofereceu-se para falar.

 

Qual vai ser o impacto desta aproximação na região?
Essa é a verdadeira questão, a mudança na região. Os norte-coreanos querem um acordo de reunificação da península. O problema é que o Norte vai querer que o Sul quebre os acordos de defesa com os EUA, o que alteraria o equilíbrio de poder na região. Os sul-coreanos vão querer manter essa relação com os EUA e, ao mesmo tempo, aproximar-se do Norte. Ponto difícil das negociações! Claro que se os EUA saírem, o grande vencedor será a China, e os norte-coreanos não con-
fiam nos chineses. Por isso, vão arranjar maneira de manter os EUA na Coreia do Sul só não tão abertamente como agora.

 

Diz que Pyongyang é útil à China. Porque mantém os EUA dependentes da China quanto à península coreana? 
Há anos que a Coreia do Norte faz explosões nucleares e afunda barcos. Os EUA disseram à China que eles tinham de pará-los, a China disse a Pyongyang para parar. Depois vêm as conversações sobre as tarifas ao aço e os chineses perguntam aos americanos se vão ser penalizados quando acabaram de lhes resolver o problema na Coreia do Norte. A China adoraria ver os EUA entrarem em guerra com a Coreia do Norte e gostam da tensão entre os dois porque limita os EUA. Como Trump sabe que os chineses não vão ajudar, impôs o embargo ao aço chinês. Pequim tem agora de decidir se entra nestas negociações. Há uns 20 anos que os EUA falam em usar essa vantagem sobre a China e Trump usou-a. Os media olham a China como uma gigantesca nação de poder ascendente, mas não é. E só faz os investimentos que estrategicamente mudam a opinião pública.

 

Outro país a ficar descapitalizado é a Rússia. A agit-prop de Putin funciona internamente? 
A Rússia é um país do terceiro mundo com 80% do orçamento dependente do petróleo, cujo preço não controla. Desde que este desceu, a Rússia entrou em crise e lá continua. O preço do petróleo vai passar a ser estabelecido pelos EUA, que vão ser o maior produtor mundial deste ano e, com isso, vão poder baixar os preços. Putin prometeu ao eleitorado que acabaria com a catástrofe económica de Yeltsin e que faria da Rússia um grande poder. Não pode fazer nada pela economia e só pode fingir ser uma grande potência atuando na Síria, mesmo sem interesse estratégico. A Rússia enfrenta agora o que derrotou a União Soviética: aumento de custos da defesa, descida dos preços do petróleo.

 

Qual é então o grande problema da atualidade?
A Europa. Há uma subida contínua de forças antieuropeias e as elites não acreditam que elas sejam tão poderosas. Estão em negação e, como tal, paralisadas. As classes baixas estão a organizar-se de forma ameaçadora e aqui temos a parte do mundo economicamente mais viável, mais criativa e historicamente mais importante em plena crise, negada pelas suas lideranças políticas.

 

Qual é a sua visão para a débacle da Europa?
Vejo fricção crescente, limitações de fronteiras, subida de nacionalismos, não sei se a Europa tem energia para a guerra. Tem energia para a malícia, os europeus têm uma grande capacidade de não gostarem uns dos outros, mas guerra é outra coisa.

 

Entrevista por Cristina Peres, publicada no EXPRESSO, 06 de maio de 2018. Versão original aqui.