"A Índia está cada vez mais próxima do Ocidente, sem cortar os laços com a Rússia"

Antigo Conselheiro Nacional de Segurança da Índia, Shivshankar Menon, que foi também embaixador na China, no Paquistão e em Israel, esteve em Portugal para a conferência “Um Mundo Dividido”, organizada pelo Clube de Lisboa, e conversou com o DN sobre as ambições do mais populoso país do mundo.

A Índia é agora o país mais populoso do mundo. Isso torna ainda mais justo que integre o Conselho de Segurança da ONU, como membro permanente? É importante para a Índia esse estatuto?
Há duas ordens de importância. É importante porque na Índia há uma sensação de que as organizações mundiais não são representativas do mundo de hoje. E de que temos o direito de ser representados na administração do mundo. Mas também é importante porque representaria que as organizações e estruturas mundiais estão prontas para se adaptar às mudanças no mundo. O mundo mudou muito desde 1945, desde que a Carta das Nações Unidas foi escrita. A distribuição de poder já não é a mesma e os problemas são muito diferentes. E como se pode resolver esses problemas a menos que tenhamos todos na mesa? E se estamos a falar de um mundo que se quer democrático, certamente faz sentido as instituições internacionais também serem democráticas. 

É  provável essa reformulação do sistema das Nações Unidas ?
É improvável que aconteça, porque, francamente, os detentores do poder estabelecido não estão dispostos a compartilhá-lo muito alegremente.

A Índia tornou-se o país mais populoso ao ultrapassar a vizinha China em 2023. Como é a relação entre os dois gigantes asiáticos?
É uma relação difícil agora, porque tivemos problemas na fronteira em 2020, quando os chineses tentaram mudar o status quo, e ainda não resolvemos a questão completamente apesar de alguns progressos. Há cerca de 100 mil soldados, em ambos os lados, em Ladakh, no setor ocidental. E este será o quinto inverno que passam lá em cima, mais de cinco mil metros acima do nível do mar. Então, politicamente, é uma relação difícil. Economicamente, ainda estamos muito ligados um ao outro. Fazemos mais de 135 mil milhões em comércio, com grande desequilíbrio a favor da China, mas estruturalmente estamos muito ligados em setores importantes, como os automóveis, a energia, as telecomunicações, também nos produtos farmacêuticos. Então, é um quadro muito misto hoje o da relação.  Acho que ambos os governos querem sair desta situação, mas não sei se conseguirão gerir essas contradições.

É verdade, que a Índia, que se tornou independente em 1947, e a China, República Popular desde 1949, estão em permanente competição sobre qual escolheu o melhor sistema de governo?
Acho que isso acontece mais aos olhos das outras pessoas, de fora. Pessoalmente, não acho que exista essa competição. E de qualquer forma, como se mede essa competição? Puramente em termos económicos? Ou mede-se em termos de qualidade de vida das pessoas? Ou mede-se em termos de satisfação das pessoas? Quanto valor se dá à democracia? Porque estamos a falar de países muito diferentes.

De certa forma, a China é muito mais homogénea do que a Índia, um país de extrema diversidade, linguística, religiosa e cultural, que precisou de soluções políticas baseadas no diálogo.
Bem, digamos que as 18 províncias da China, que são cerca de um terço do território, são muito mais homogéneas do que a Índia, sim, hoje. Ao longo da história, na verdade, tem sido um caldeirão de mistura de  povos. Mas hoje  96% dos chineses se autodenominam han, de uma forma ou de outra. Mas isso esconde que existem muitas diferenças dentro da China também, entre a China costeira, a China interior, etc. Então, sim e não. Mas como eu disse, temos geografias muito diferentes. A Índia é uma geografia aberta pelo mar. Sempre foi. Estamos conectados pelo mar a todos os outros, e estamos há milénios. A China é uma geografia muito mais fechada, muito mais autonómica geograficamente. A nossa história é completamente diferente. E como disse, a demografia é diferente e está a ficar ainda mais diferente. A nossa economia é bem diferente da China. Então, francamente, quando as pessoas comparam Índia e China não estão a comparar coisas semelhantes. Estão a comparar maçãs e laranjas.

Falou sobre essa conexão indiana com o mundo exterior, essa abordagem ao mar, até com pontos em comum com a história de Portugal. A Índia não faz parte do Ocidente, mas também não é automaticamente anti-Ocidente? A Índia está no meio destes conceitos d e Ocidente e de Oriente?
Bem, tradicionalmente, se olhar para a história indiana, sempre estivemos conectados ao Ocidente, que no passado era o Levante, Iraque, Egito. Plínio escreveu no século II que a Índia estava a ficar com todo o ouro de Roma. Mas o que estávamos a negociar? Estávamos a negociar os nossos produtos com Roma, mas também estávamos a negociar o que saía do Mar da China Meridional, de Samatra. Usávamos os ventos das monções para realmente navegar pelo oceano de águas profundas, há 2500 anos atrás, para ir a Malaca, buscar mercadorias, trazê-las, e depois então levá-las, vendê-las para o Oeste, e assim obter coisas do Oeste, vendendo-as depois a Leste, etc. Estávamos a negociar, mas éramos parte de uma rede maior, e isto aconteceu sempre ao longo da história.

Vê a Índia como uma ponte entre o Ocidente e o Oriente?
Sempre fomos ambos. Quero dizer, na Índia sempre tivemos conexões com o Ocidente e o Oriente, fomos influenciados por ambos, e temos uma identidade distinta, porque é o único subcontinente do mundo. Não há outro subcontinente. E isso por si só diz que estamos conectados, porque somos um subcontinente, mas também somos um continente, também somos autónomos em certo  sentido. Na Índia temos a nossa própria identidade, e sempre trabalhámos entre civilizações, com os outros. Sempre estivemos abertos às pessoas, à imigração, a novos bens, a novas ideias, a tudo.

Estou curioso sobre a relação atual da Índia com a Rússia e os EUA. Historicamente, a relação era muito boa com a União Soviética, e hoje em dia ainda mantém uma boa relação com a Rússia, mas há uma tendência de se aproximarem cada vez mais dos EUA?
Nós indianos estamos muito mais próximos dos EUA, e ficamos cada vez mais próximos. De facto, se olhar para os últimos 10 a 15 anos, o nosso relacionamento com o Ocidente melhorou consideravelmente. 

Com o Ocidente em geral, mas especialmente com os EUA? 
Especialmente com os EUA, acho que tem sido mais fácil com os EUA. Não ajuda que o Ocidente se tenha tornado cada vez mais protecionista no mesmo período, desde 2008. Isso tornou a vida mais difícil, mas o facto é que, quer se olhe politicamente, quer se olhe economicamente, quer se olhe mesmo em termos de defesa e segurança, a Índia está cada vez mais próxima do Ocidente, sem cortar os laços com a Rússia.
Mas, por exemplo, em relação à invasão russa da Ucrânia  a Índia tem uma posição ambígua.

Viu que a primeira visita do primeiro-ministro Narendra Modi foi, depois de ser reeleito este ano, à Rússia? Mas depois também foi  à Ucrânia, e tornou-se até o primeiro primeiro-ministro indiano a visitar a Ucrânia. Acho que ele deixou bem claro que ficaria feliz em ajudar a trazer a paz se pudesse. Vamos ver o que acontece, mas só podemos ser um instrumento de negociação se ambos os países estiverem dispostos a tal.

E é possível que a Índia tenha também um papel no Médio Oriente?
Agora mesmo, é difícil ver, porque os participantes têm que querer a paz. E nós só podemos ajudá-los a realizar os seus desejos. Não podemos impor a paz. Não somos uma superpotência nesse sentido. Então, é difícil ver isso acontecer agora no Médio Oriente.

Voltando aos EUA, quando olhamos para estas presidenciais de 2024, Kamala Harris, a candidata democrata, tem origem indiana, a mulher do vice-presidente de Donald Trump também tem ascendência indiana. É curioso, e mostra como há uma comunidade indiana muito bem-sucedida nos EUA. É um fenómeno relativamente recente?
Na verdade, aconteceu nos últimos 25 anos ou até mais.

Isso também favorece a relação entre a Índia e os EUA?
Certamente ajudou. A diáspora ajudou consideravelmente a mudar a imagem da Índia nos EUA. Através da eleição de congressistas e outros, do sucesso de empresários e também de outras pessoas, ajudou a construir vínculos entre a Índia e os EUA. Porque é uma comunidade educada, relativamente próspera, e que , por ser uma diáspora recente, tem vínculos muito fortes em casa - pais, avós, irmãos. Então, ainda têm uma relação com a Índia que é sólida. E, portanto, eles querem retribuir à sociedade na Índia. Querem desempenhar um papel de ligação entre os dois países, e eu acho que é uma coisa boa. Funciona para nós, funciona para os EUA também.

Sobre a questão nuclear, e sei que teve um papel  como diplomata em tentar normalizar o estatuto do seu país, tem receio quando os líderes falam tanto sobre nuclear hoje em dia?  Um arsenal nuclear deve ser algo que se tem, mas sobre o qual não se deve falar?
Sim, habituámo-nos ao nuclear, a viver com ele. É só pensar em quão nervosos éramos nos anos 50, e quão obcecados éramos então com a defesa civil, de várias maneiras. Hoje está quase normalizada a questão do arsenal nuclear. Mas no sul da Ásia é um pouco diferente. As armas nucleares na verdade estabilizaram a situação. Nós lutámos três guerras com o Paquistão nos primeiros 24 anos depois da independência. Desde que as armas nucleares surgiram, desde 1974, quando testámos e mostrámos a capacidade pela primeira vez, francamente, nunca mais travámos uma guerra convencional completa. Em certo sentido, isso reduziu o limiar para a guerra no sul da Ásia, entre a Índia e o Paquistão. E quanto à China, o outro vizinho com armas nucleares, sempre disse não ao primeiro uso e nós também dissemos que não haveria primeiro uso desde o primeiro dia. Então, o nuclear na verdade não entrou na discussão. E a China nunca ameaçou usar armas nucleares contra a Índia para mudar o comportamento da Índia. E nós também não, em relação à China.

Mas quando olha para a crescente rivalidade entre os EUA e a Rússia é diferente?
Esses dois países têm um cálculo diferente. Têm uma história e desenvolveram uma teoria inteira em torno das suas próprias circunstâncias particulares, o que, francamente, não se aplica a nós. Mas se acho que o nuclear será usado? Sabe, não faz sentido, francamente, que alguém use armas nucleares hoje. É uma arma política. Não é uma arma para fazer guerra.

Uma  pergunta mais pessoal. Quais são as suas memórias de conversar com o seu avô, primeiro chefe da Diplomacia da Índia independente, com o  seu pai e tio também, ambos diplomatas, sobre esses primeiros anos de construção de uma Índia nova e moderna, no contexto da Guerra Fria, sendo desde a primeira hora uma democracia na Ásia  quase uma anomalia?
Acho que foi um momento marcante, na verdade, porque se  pensarmos bem, nenhum deles tinha experiência no que estava a fazer, certo? Não era como se os britânicos lhes tivessem dado uma oportunidade de se preparar para tal. Quer dizer, o departamento político e estrangeiro era quase todo britânico. A inteligência era 100% britânica, os escalões mais altos. O primeiro-ministro Jawaharlal Nehru nunca tinha tido um emprego antes. Ele nunca tinha comandado nada. Ele foi presidente do Conselho Municipal de Allahabad por dois anos na década de 1920 ou algo assim. E estavam a  construir uma nação. Estavam a fazer de tudo, desde, pela primeira vez, ter o Horário Padrão Indiano para estabelecer um fuso horário comum para todos. É incrível quando se pensa no que aquela geração fez. E acho que eles estavam tão orgulhosos do que estavam a  fazer porque, para eles, a independência era tão importante que tudo era medido em relação a esse padrão. E essa é a razão pela qual eles foram corajosos o suficiente para não se alinharem num mundo da Guerra Fria que era bipolar, dividido em blocos, onde a pressão era claramente para unirem a Índia a  um bloco ou outro. Mas a independência era preciosa para eles. Eles lutaram e ganharam a sua independência aos britânicos. Não iriam entregá-la a mais ninguém.

Essa geração ainda é recordada, respeitada, na Índia?
Eu acho que sim, e com razão, porque o que eles construíram durou. E essa é a outra coisa incrível. Sem experiência, apenas com os seus cérebros para aplicar, o que eles construíram ainda está lá. Eles reconheceriam  que a Índia se mantém democrática. Este é realmente o produto de uma sociedade democrática, secular e plural, onde há um governo federal, onde há espaço para todos, onde se pode acomodar  enorme quantidade de diversidade, mas permanecer unido.

E um país economicamente mais bem-sucedidos do que imaginariam na época?
Sim, mas de uma forma diferente do que eles imaginavam. Pensavam muito mais na economia como algo misto, pois o papel do Estado para eles era muito importante. Mas sim, temos uma Índia muito mais bem-sucedida do que eu acho que eles, dessa geração, teriam imaginado.

 

Entrevista de Leonídio Paulo Ferreira, Diretor-adjunto do Diário de Notícias e membro do Clube de Lisboa.

Publicada originalmente no Diário de Notícias, 17.11.2024.