China e Europa: divididas por perceções e abordagens, unidas pelas oportunidades

A evolução económica da China, a sua política externa e particularmente as relações com os Estados Unidos e a Europa foram debatidos, em Lisboa, no dia 4 de dezembro de 2018.

 

A política externa chinesa tem-se caracterizado pelo uso do poder económico para alargar a sua influência política, tanto no plano bilateral como multilateral.

No plano bilateral, é conhecida a magnitude dos contratos e a influência económica em muitos países de África e da América Latina, com altos níveis de investimento que exigem frequentemente um não questionamento da integridade territorial chinesa. Em termos multilaterais, a China tem vindo a integrar-se no sistema económico e financeiro internacional, nomeadamente através de uma maior participação nas instituições financeiras internacionais (estando, por exemplo, a debater como poderá aumentar a contribuição chinesa para o Fundo Monetário Internacional) ou da criação de novas instituições (como o Banco Asiático de Investimento em Infraestruturas), bem como da conversão internacional da moeda chinesa, a partir de 2016. O país pretende ter uma voz cada vez mais forte nos assuntos internacionais e um peso maior na definição das agendas e das regras, como é o caso de uma potencial reforma da Organização Mundial de Comércio (OMC).

A política externa chinesa desenvolve-se num quadro de tensão entre os assuntos exteriores e os desafios internos. Na realidade, o gigante chinês é este paradoxo híbrido que se afirma como país desenvolvido em algumas zonas geográficas e setores, mas como um país em desenvolvimento em muitos outros aspetos, incluindo grandes desafios como a desigualdade de rendimentos ou a poluição. Internamente, é um exemplo de mobilidade social, mas não se transforma uma sociedade predominantemente rural numa sociedade digital rapidamente, particularmente tendo em conta a dimensão do país. Por outro lado, o facto de ter aumentado o rendimento interno fez com que outros países se tornassem mais competitivos para o investimento internacional, enfrentando atualmente problemas de deslocalização desses investidores para regiões onde o custo do trabalho é menor (como a Tailândia ou o Vietname). Qual o nível de crescimento  necessário para assegurar a inclusão e a estabilidade social no plano interno? E como evoluirá o contrato social, tendo em conta que não existe um “welfare state”? Os desafios internos são enormes, para além dos da vizinhança próxima, tendo em conta as relações conturbadas com vários países vizinhos ao longo da História e a consequente dificuldade de construir alianças no plano político e de segurança/defesa.

A China foi um dos últimos países a organizar um ministério dos negócios estrangeiros, que na altura se denominou de “secretariado para o resto do mundo”. Deng Xiaoping foi, a partir de finais dos anos 70 do passado século, o arquiteto da reforma económica chinesa e, ao transformar o país numa economia de mercado, contribuiu também para transformar o mundo. A China percebeu que o poder e crescimento económicos são cruciais tanto no plano interno como externo. O crescimento económico é crucial em termos de poder , pois se olharmos para o exemplo dos Estados Unidos, a riqueza foi preponderante para se tornarem uma grande potência; é igualmente fonte de legitimidade, pois muitos argumentam que a transição do antigo estilo socialista igualitário tem sido preenchido pelo crescimento e pelos benefícios que este traz, reforçando a legitimidade do regime; por fim, o crescimento tornou-se a base do novo contrato social, dado os ganhos sociais e económicos, incluindo a mobilidade social, a redução da pobreza e a melhoria dos padrões de vida. A China tornou-se o principal beneficiário da globalização e o país que melhor aproveitou as suas oportunidades, conseguindo em poucas décadas o que outras nações levaram séculos a realizar.

Os números são evidentes: se em 1980 a China representava 0,8% do comércio mundial de mercadorias, trinta anos depois representava já 12%. Atualmente, a China é o principal parceiro comercial de bens para mais de 70 países no mundo. É também o segundo país com mais patentes, tendo passado de 0,6% do mercado mundial, em 2005, para 42,4% em pouco mais de uma década, sendo igualmente o atual líder mundial de e-commerce. Cerca de metade das empresas privadas na China foram criadas na última década, a classe média regista grande crescimento e a riqueza está concentrada nas gerações mais jovens (ao contrário da Europa), o que atesta o dinamismo da economia e da sociedade chinesa. É o maior investidor mundial em Investigação & Desenvolvimento, com mais de 1300 centros de investigação de excelência, sendo que cerca de 70% dos estudantes chineses formados no exterior regressam ao seu país. No cômputo geral, a generalidade dos analistas ocidentais erraram as previsões conservadoras sobre a China e os dados económicos mostram-no claramente.

Mas como é que o crescimento económico se traduzirá no seu status global? A visão chinesa do mundo prefere a multipolaridade ao multilateralismo, pelo que a relação entre os principais polos - China, Estados Unidos e União Europeia - tem uma grande relevância. Se é verdade que a China tem um papel preponderante na nova ordem económica mundial, não existe propriamente uma nova ordem política em termos globais, pelo que as pretensões da China enfrentam resistências, particularmente dos EUA.

Neste quadro, existem dilemas importantes, uma vez que, por um lado, a China pretende implementar uma política externa global que vá para além dos domínios económicos e ser reconhecida como uma grande potência mas, por outro lado, enfrenta divergências e desconfianças de diversos países, tem obstáculos de comunicação e mostra dificuldades de ir além do papel de financiador de projetos e infraestruturas. Assim, a China procura agora não apenas parceiros económicos, mas parceiros diplomáticos, que consolidem o relacionamento em várias vertentes (incluindo no plano cultural) e que contribuam para as suas aspirações enquanto ator global.

As relações com os Estados Unidos passam por uma fase fraturante, não apenas devido à nova administração norte-americana, uma vez que a guerra comercial é apenas um aspeto entre outros. Os Estados Unidos não abdicam da sua liderança mundial em dois aspetos fundamentais: a moeda (mais de 60% das transações mundiais são feitas em dólares) e a liderança militar (com o maior orçamento de segurança e defesa do mundo). A China é o único polo que poderá ameaçar essas lideranças, quer devido à convertibilidade da moeda chinesa, quer pelo facto de ter sido o único país com capacidade para acompanhar os Estados Unidos na subida dos orçamentos militares. Neste “campeonato” entre a China e os Estados Unidos, a liderança tecnológica e digital torna-se uma questão crucial. Neste quadro, Donald Trump soube reconhecer que a China é o maior desafio à política externa norte-americana. No entanto, na China, e apesar de as relações sino-americanas serem o centro da política externa, existe grande dificuldade de perceber a América profunda, que está para além de Washington ou do pensamento regido pelos membros da Ivy League, Harvard e outros.

Isto pode favorecer a União Europeia, mas a abordagem europeia tende a expressar um dilema entre Washington e Pequim. A perspetiva de alguns setores chineses sobre as instituições da União Europeia é que estas estarão sempre “contra a China”, independentemente da atuação desta última, existindo uma intenção de influenciar a política interna chinesa. A divergência de modelos de democracia e de crescimento contribui para esse preconceito, mas a realidade é que muitas das economias com maior crescimento no mundo adotaram o “modelo de Singapura”, com uma política autoritária e centralizada, rápido crescimento económico e forte inclusão social permitida pelos elevados níveis de crescimento. Esse não é o modelo europeu, mas é um dos modelos possíveis, que deve ser analisado e compreendido.

No plano económico, se a China foi encarada por Bruxelas como uma ameaça à indústria transformadora, com realce à têxtil, tem sido também vista como uma oportunidade, particularmente no setor dos serviços e nas exportações. Do lado chinês, o investimento em países europeus corresponde à intenção de aumentar a presença no continente, absorver tecnologias, adquirir marcas consolidadas e ainda angariar parceiros para a Belt & Road Initiative. Do lado europeu, países como Portugal, a Espanha e a Itália encaram o investimento chinês como uma oportunidade para renovarem e melhorarem as suas infraestruturas e não é por acaso que Portugal e Espanha foram escolhidos para pontos finais desta visita oficial do Presidente chinês à Europa. No caso português, ao longo da última década, as exportações portuguesas para a China quadruplicaram, enquanto o peso da China no PIB português triplicou. A China investe atualmente 7 vezes mais na Europa do que a Europa investe na China e isso é revelador da importância que esse investimento tem para muitos países europeus. Dada a persistência de dificuldades e obstáculos à exportação da Europa para a China, as relações políticas são um fator-chave de desbloqueio de dificuldades e de aprofundamento das relações económicas, com realce à criação de um ambiente de maior confiança e abertura de canais para o setor privado.

 

 

O Clube de Lisboa e a CCIP – Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa organizaram a Lisbon Talk sobre “China’s Foreign Strategy and Europe” na manhã de 4 de dezembro de 2018, com o apoio do IMVF e da Câmara Municipal de Lisboa.

A Lisbon Talk contou com a participação de Jie Yu, investigadora do Royal Instiute for International Affairs (Chatham House) e Paulo Portas, vice-presidente da CCIP, sendo moderada por Raquel Vaz-Pinto, investigadora do IPRI – Universidade Nova de Lisboa e membro da direção do Clube de Lisboa.