Lisboa debateu o desenvolvimento em tempos de incerteza

Da geopolítica à segurança, da globalização à sustentabilidade do planeta, do desenvolvimento global aos desafios da União Europeia, foi assim a 3ª Conferência de Lisboa.

A 3ª Conferência de Lisboa desenrolou-se ao longo de dois dias de debates e reflexões sobre o Desenvolvimento em Tempos de Incerteza, tendo contado com mais de vinte oradores e cerca de 500 participantes. Organizadas pelo Clube de Lisboa, as Conferências ofereceram este ano, mais uma vez, uma agenda rica em temas atuais ligados ao Desenvolvimento, pretendendo consolidar uma imagem de Lisboa como polo central da discussão dos grandes temas internacionais que afetam a vida das nossas sociedades.

 

O programa da conferência e os debates realizados salientaram a imprevisibilidade como um fator constitutivo das relações internacionais, num contexto mundial de grande instabilidade na atuação dos principais atores globais e de fortes tensões no cenário internacional, pondo em causa equilíbrios que tínhamos por adquiridos e, muito em particular, colocando em risco os mecanismos multilaterais e a própria democracia. Na sessão de abertura, isso mesmo foi salientado pelo Presidente da República, que alertou para a existência de uma "tempestade quase perfeita", provavelmente irreversível em várias áreas, que condiciona o desenvolvimento humano.

 

As perspetivas geopolíticas foram debatidas na sessão sobre O PODER, onde se analisou o contexto mundial particularmente após a crise financeira de 2008, em que a interdependência se tornou um facto inegável e o nacionalismo continua a ser um elemento constante. Com a China a sentir o peso da concorrência à produção, com a Arábia Saudita a sentir a crise do petróleo, e com uma nova administração americana focada no “America first” (embora a questão do protecionismo já venha de trás), a Europa continua a resistir a um governo centralizado e a viver os problemas do seu processo de integração, incluindo a gestão do Brexit.

 

A interligação entre violência extremista, interesses económicos e disputas geoestratégicas foi analisada no painel sobre A SEGURANÇA, numa sessão onde estiveram proeminentes as relações entre a Rússia e a União Europeia, marcadas pela recente tensão diplomática com o Reino Unido, em que as sanções à Rússia serviram essencialmente objetivos de política interna (tanto para o Reino Unido como para o regime de Putin). As respostas internacionais ao conflito sírio e a guerra ao terrorismo estiveram também no centro dos debates, com uma abordagem mais pessimista, quer pelo facto de o mundo ter estado à beira de um confronto militar entre EUA e Rússia, no caso sírio, quer pela descoordenação e visões diferentes no combate ao terrorismo, que passa mesmo pela divergência quanto à definição de terrorismo e de quem são os “inimigos”. A Síria e a Líbia foram referidos como expressão de um novo tipo de guerra, marcada por condições sociais anárquicas em que vários grupos manipulam a violência, espalhando ideologias baseadas no medo e tirando dividendos económicos. A dificuldade de gestão e resolução deste tipo de conflitos é evidente, na medida em que a abordagem militar e a clássica diplomacia não são suficientes, sendo necessárias abordagens assentes na criação de justiça e de legitimidade democrática, numa perspetiva de mais longo-prazo.

 

No painel seguinte, referiu-se a necessidade de analisar mais em profundidade a relação entre A GLOBALIZAÇÃO – que continua em processo de aceleração - e a difusão do poder no mundo atual: difusão de poder dos Estados para grupos diversos, para o nível supranacional, entre outros fluxos. A coexistência de um mundo centrado nos Estados (ligado às fronteiras, à soberania, às instituições centralizadas) com um mundo ligado por fluxos (o mundo das redes, das conexões e dos dados, das economias digitais), com impactos negativos e positivos, traz-nos diferentes tipos de desafios, em termos da segurança e do desenvolvimento. A gestão atual das migrações são um exemplo da aplicação de abordagens tradicionais/territoriais de segurança a uma realidade que diz respeito a fluxos e redes.

 

Neste contexto, assistimos a um grande défice na governação global. Um dos grandes problemas é que as instituições políticas não estão adaptadas à globalização, o que gera descontentamento e uma dissociação com as aspirações dos povos. A nova normalidade é não existirem certezas: os partidos políticos tradicionais fragmentam-se e a direita e a esquerda perdem-se em divisões internas, sendo a maior fratura atual entre aqueles que defendem a abertura e os que preferem o protecionismo e o nacionalismo. Outra questão é o impacto que a evolução tecnológica, a robótica e a inteligência artificial terão na recuperação da economia e na organização das sociedades. O sistema tem de funcionar de forma a que as pessoas não se sintam excluídas; no fundo, a pergunta de base para cada um é: “is globalisation working for you?”

 

Na sessão sobre O PLANETA, ficou evidente a insustentabilidade do modelo atual (global) de desenvolvimento, em que continuamos obcecados pelo crescimento económico contínuo e exponencial, apesar das evidências científicas sobre a urgência de alteração do paradigma. Se é verdade que a União Europeia tem feito um grande esforço de diminuição das emissões de gases com efeito de estufa, nos maiores países em desenvolvimento essas emissões estão a aumentar, como é o caso da China e da Índia. A previsão é que as economias emergentes continuem a crescer, mesmo que o crescimento abrande nos países industrializados, e portanto o seu papel é fundamental nas respostas globais às alterações climáticas, nas opções sobre os modelos de crescimento económico e sobre a matriz energética.

 

Nestes países - mesmo estando a China e Índia entre os principais investidores nas energias renováveis e em fontes menos poluentes - a transição energética não se está a processar ao ritmo necessário para evitar consequências graves. É preciso mudar globalmente mentalidades modelos de negócio, hábitos de consumo, bem como mudar a forma de organização das cidades, onde vive uma parcela cada vez maior da humanidade. A esperança é que se consiga acelerar esta mudança por razões económicas, ou seja, pelo facto de as energias menos poluentes serem, cada vez mais, uma aposta economicamente inteligente, que gera lucro, emprego e desenvolvimento. Neste contexto, é fundamental a intervenção pública – e as políticas só mudam se alterações climáticas e a poluição forem um risco para a economia.

 

Todas estas questões estiveram presentes no painel sobre AS PESSOAS, onde se salientou a previsão de as classes médias serem formadas por mais de 3 mil milhões de pessoas em 2050, apesar de “a classe média dos pobres ser diferente da classe média dos ricos”. A classe média é que compra bens de consumo (duráveis ou não) e hoje há uma produção em massa para um consumo em massa, mas aquilo que ajudou a criar consumidores acabou por estragar o emprego. Só agora começamos a ver e a perceber alguns efeitos da  revolução industrial tecnológica em curso, em sociedades fragmentadas e conectadas, nomeadamente sobre os padrões do trabalho e sobre o Estado social, questões amplamente debatidas nesta sessão. A forma como produzimos, consumimos e comunicamos está em rápida mutação, sendo necessário ter uma abordagem da realidade que vai para além do cálculo do PIB e da produtividade. No painel, foi também abordado o papel mundial da China, onde a expressão “crise” também significa “oportunidade”.

 

Por fim, os dilemas e tendências da integração na EUROPA foram o tema central do último painel, onde se analisaram várias facetas do populismo que cresce nos vários países europeus, desde o populismo do norte da Europa, muito ligado ao tema da imigração, ao populismo forte do leste europeu, ligado a um novo nacionalismo. Os oradores interrogaram-se sobre se Bruxelas está a fazer o que é necessário para manter o projeto europeu, concluindo que a União Europeia não é menos democrática do que os seus países membros e que o futuro europeu depende dos governos destes últimos. Os efeitos negativos do Brexit, a forma como os Estados Unidos vêm a Europa, a evolução histórica de uma Europa espremida entre a Rússia e os Estados Unidos, as relações franco-germânicas e o novo papel da política externa francesa no contexto europeu foram igualmente debatidos.

 

Na sessão de encerramento das Conferências, foi expressa a preocupação pela época de incerteza global e de retrocesso dos valores de afirmação identitária da Europa. Nesse âmbito, o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Fernando Medina afirmou a importância das grandes cidades europeias na luta contra o retrocesso dos valores e direitos, defendendo o papel das cidades como polos de defesa da diversidade e da inclusão. Este é o tempo de afirmação dos direitos fundamentais das pessoas, em que a reflexão tem de ser acompanhada da ação e em que a cidadania deve ser expressa ativamente.