Vai participar na 4.ª edição das Conferências de Lisboa num painel chamado "Democracia liberal e multilateralismo debaixo de fogo". Políticas como o America First de Donald Trump já mudaram a ordem mundial ou são apenas uma fase?
É importante pensarmos no impacto que Trump já teve, mas temos de reconhecer que muitas destas instituições e relações já estavam sob pressão antes. E isso explica em parte porque é que Trump, com o seu America First, conseguiu ter um tal impacto: ou seja, ele atacou coisas que já estavam a ter problemas. Dito isto, não invalida a importância do papel que Trump tem. É o primeiro presidente dos EUA numa geração a ter este desrespeito pelas instituições e relações que sempre foram essenciais não só para os Estados Unidos, mas também para o Ocidente em geral. A NATO, o multilateralismo, as relações económicas, tudo. Ele tem uma visão muito simplista do mundo, protecionista, que considera as instituições e as relações multilaterais antitéticas. Por isso as atacou de forma mais direta e consistente do que qualquer outro presidente. Mas é importante explicar que outras tendências já tinham começado a minar muitas destas instituições e relações antes de Trump aparecer.
E o que podemos esperar se tivermos mais quatro anos de presidência Trump?
Essa é a verdadeira questão que preocupa as pessoas que estão a tentar restaurar a ordem mundial. Foram feitos muitos, muitos estragos nos últimos quatro anos - nas relações entre os EUA e a Europa, com falta de liderança americana em várias questões, da segurança à democracia, passando pelas alterações climáticas. Mais quatro anos disto, vai ser ainda pior. E irá tornar incrivelmente mais difícil, depois, voltar atrás. Não só por serem mais quatro anos, mas porque com a mudança na posição da América no mundo, a retirada de vários tratados multilaterais, vai ser muito difícil reconstruir estas realidades. É muito fácil destruir, mas é difícil reconstruir. Se tivermos mais quatro anos de Trump e ele reforçar ainda mais esta posição, convencido de que tem um mandato renovado para o fazer, vai ser muito difícil depois reconstruir as instituições e as relações que eram as bases do Ocidente desde o fim da II Guerra Mundial.
No seu livro Democracia e Ditadura, aborda a crise da democracia ocidental. É uma crise da própria democracia ou mais dos partidos e do sistema tradicionais?
Eu diria que são duas versões da mesma coisa. Mas é importante distinguir entre os problemas que algumas novas democracias estão a ter - e aqui estou a pensar na Europa de Leste - e os problemas que as velhas democracias enfrentam. Diria que Portugal, Espanha e Grécia ficam no meio. Já eram democracias consolidadas antes de passarem por ditaduras. A Grécia é um exemplo notável, tendo em conta a crise económica que atravessou e a pressão externa que sofreu, ainda ser uma democracia é um feito! Focamo-nos tanto no colapso da democracia que olhar para um caso como o da Grécia é impressionante. Aquele país passou por uma crise económica ao nível da Grande Depressão! Portanto, se olharmos para o Ocidente - EUA e Europa Ocidental -, o que aconteceu foi que muitos partidos políticos e muitas relações (entre economia e política, entre trabalho e gestão) entraram em declínio nas últimas décadas do século XX. Uma tendência que se acelerou no início do século XXI e isso teve um forte impacto na própria democracia. Se olharmos para os dados, a insatisfação com a democracia está ligada ao sentimento dos cidadãos em relação à forma como as coisas estão a ser geridas. Os cidadãos não são loucos! Quando veem que os seus problemas enfrentam certas dificuldades, a sua insatisfação com as instituições e as elites que consideram responsáveis por lidar com esses problemas cai. Desde a crise financeira que passámos a ter consciência dos problemas profundos das nossas economias e das nossas sociedades. Tanto na Europa como nos EUA, esta crise financeira coincidiu com grandes vagas de imigração. Podemos achar que a imigração é ótima. Eu própria sou grande fã. Mas não há dúvida de que estas são mudanças sociais dramáticas que exigem aos cidadãos e aos governos que se ajustem. Se juntarmos a isso uma crise económica, mudanças nas tecnologias de comunicação, etc., temos uma tempestade perfeita de problemas com que as democracias, mesmo as mais sólidas, tiveram de lidar. E o que vemos é uma crise nos partidos tradicionais na maior parte dos países. Portugal é uma verdadeira exceção. Ainda têm um partido social-democrata sólido - que para confusão dos estrangeiros se chama Partido Socialista. E têm conseguido manter uma competição política tradicional, com a dicotomia esquerda-direita. Mas em muitos outros países, os partidos da esquerda tradicional desapareceram. E ao mesmo tempo assistimos a uma fragmentação do sistema político, o que torna muito mais difícil construir coligações funcionais, o tipo de maioria necessária para lidar com estes problemas. E permitiu também que outras questões, além das classes ou da competição económica, surgissem. Assistimos à sobrecarga de muitos sistemas políticos. É fácil encontrar razões para o descontentamento com os partidos tradicionais e perceber porque é que os populismos ganham com essa insatisfação, com esse sentimento antissistema a que assistimos nos últimos anos.
Quando o sistema falha, o populismo chega?
Sim. O populismo é um sintoma mais do que uma causa. É um sintoma da disfunção democrática mais do que uma causa dessa disfunção.
Já voltamos a Portugal, mas antes disso: porque é tão difícil para os partidos tradicionais, sobretudo os de centro-esquerda, encontrar respostas a estas preocupações e problemas?
Há todo um conjunto de razões. Deixe-me identificar duas. A primeira é que as políticas sócioeconómicas tradicionais, que funcionaram no segundo terço do século XX, começaram a perder a eficácia no último terço. A economia mudou, o capitalismo mudou. E as propostas sociais, económicas, de regulação que os Estados faziam deixaram de fazer sentido. Infelizmente, por várias razões, a maior parte dos partidos sociais-democratas não tinham nada para as substituir. Por isso, uma vez que surgiu a crise nos anos 1990 na Europa Ocidental e nos EUA, uma combinação horrível de inflação e desemprego, assistimos ao descrédito de alguns níveis deste modelo. E à ascensão de um novo - o modelo neoliberal atacou as tendências básicas do modelo social-democrata. Um problema é que este modelo desapareceu. E ele era uma componente essencial do que os partidos sociais-democratas tinham para oferecer aos cidadãos nos países ocidentais. Por isso, o motivo para votarem nesses partidos diminuiu. Alguns deles aproximaram-se do centro, assumindo uma linha mais neoliberal. Quando os tempos eram bons, as pessoas até podiam ficar satisfeitas com isso, mas no momento em que as coisas ficaram más, começaram a questionar-se. Com a crise financeira, muitas pessoas pensaram porque deviam votar em partidos que não tinham alternativas para oferecer nessa área. Outra razão é que estes partidos viraram mais à esquerda também em questões sociais e culturais, muito mais do que os seus eleitores. Tornaram-se os partidos das elites mais educadas e urbanas que defendiam políticas socioculturais que pareciam muito distantes das preocupações das suas bases. E, em grande parte, distantes das preocupações da larga maioria dos eleitores.
Isso explicaria porque é que alguns desses partidos populistas de direita atraem muitas vezes eleitores da esquerda - alguns mesmo comunistas?
Sim. Alguns desses partidos, como a União Nacional, antiga Frente Nacional em França, ou o Partido da Liberdade, na Áustria, são hoje os maiores partidos da classe média nos seus países. É uma mudança radical em relação ao pós-guerra. E até na Suécia, reduto na Escandinávia da social-democracia, os partidos populistas recolhem grande parte dos votos da classe média.
Movimentos como os Coletes Amarelos em França ou as Sardinhas agora em Itália vieram para ficar ou são apenas uma manifestação pontual de uma sociedade descontente com a política tradicional?
Diria que não. O que eles são é uma manifestação por parte de alguns setores da sociedade que não se sentem representados pelos políticos. Os movimentos sociais são ótimos para expressar o descontentamento, para trazer novos assuntos para a agenda política. Mas em si não são politicamente eficientes, uma vez que não podem aprovar leis. Os movimentos sociais, por vezes, conseguem forçar os partidos políticos a admitir que se não lidarem com um determinado assunto arriscam-se a enfrentar um revolta nas ruas e nas urnas. Outras vezes, estes movimentos acabam alinhados ou mesmo integrados em movimentos políticos. Por si sós, são bons é a mobilizar descontentamento, pôr assuntos na agenda dos políticos. Para isso ter impacto, terá no entanto de ter uma consequência eleitoral.
Quando a União Europeia aceita que alguns dos seus Estados membros se definam como "democracias iliberais", isso não é uma revisão do próprio conceito de democracia?
É inaceitável. Estes países - de forma mais notória e lamentável a Hungria - não são democracias em qualquer sentido da palavra. Há eleições mas não são livres nem justas. Viktor Orbán já foi contra quase tudo aquilo que a União Europeia é suposto defender. E é trágico que a UE não tenha conseguido antecipar a possibilidade de haver retrocessos democráticos. A assunção que fizeram foi que se os países aderiam à UE e eram democracias, isso não iria mudar. Nem pensaram nas sanções que poderiam impor nesses casos. Mas mesmo sem incluir nos tratados sanções para quem tomasse decisões menos democráticas, o facto de a UE não ter conseguido lidar com isto é incrível. Toda a ideia de integração europeia aconteceu depois da II Guerra Mundial como forma de proteger os sistemas democráticos na Europa Ocidental. Fez parte de uma estratégia abrangente para manter a Europa democrática. A ideia era que os países europeus enfrentavam problemas demasiado grandes para conseguirem lidar com eles individualmente. Se queriam lidar com eles eficazmente, precisavam de um certo nível de cooperação regional. Toda a razão de ser da UE é proteger ordens políticas estáveis e funcionais. Mas agora temos um Estado claramente não democrático na UE. Isso é trágico para os húngaros e para a UE. Mina toda a razão de ser do projeto europeu. E é um grande espinho no flanco da UE, que não tem conseguido agir de forma mais dura contra Orbán. E agora há sinais preocupantes a vir da Polónia também. Os sinais que foram dados pela UE até agora não foram suficientes para fazer os líderes polacos pensar duas vezes nas implicações de enfraquecer as normas, instituições liberais e procedimentos democráticos.
Com a pandemia, houve momentos em que os Estados membros pareciam estar dispostos a pôr em causa o que os levou a juntarem-se na UE - liberdade de movimento, fronteiras abertas - e agir cada um de acordo com os seus interesses. O nacionalismo ganha nova força quando as coisas correm mal?
Bom, sem dúvida de que estamos a viver uma crise sem precedentes. E, em períodos de crise, os líderes e cidadãos nacionais estão naturalmente mais focados nos problemas dos seus países. Não é estranho que durante a pandemia outros assuntos sem relação com a covid tenham ficado esquecidos. Faz sentido. Desde sempre que se fala de problemas globais, não nacionais, que exigem respostas globais. Isto foi extremo, mas veio mostrar essa tendência. Teria sido muito melhor se a UE tivesse políticas e procedimentos implementados que a ajudassem a lidar com isto de uma forma muito mais coordenada. Seja no desenvolvimento de uma vacina, na distribuição de medicamentos em várias partes da União, na procura de uma solução para restabelecer as viagens de forma a minimizar os riscos, na coordenação entre vários agentes fronteiriços, entre várias agências de saúde. A pandemia veio mostrar que muita coisa tem ainda de ser feita. Se quando temos uma crise com todos estes problemas, voltamos ao statu quo anti-UE, é mau.
Voltando a Portugal. Como disse há pouco, somos uma exceção na Europa, com um governo estável de esquerda. Durante muitos anos achámos que o populismo de extrema-direita não chegaria cá, mas isso parece estar a mudar. A memória da ditadura deixou de nos proteger, como aconteceu em Espanha ou na Grécia, muito mais cedo?
Não sendo especialista na Europa do Sul, lembro-me de há uns anos os meus colegas que trabalhavam nesta área terem esse argumento a respeito de Espanha: que a memória recente da ditadura fazia as pessoas pensar "Ei, não queremos voltar àquilo". E de repente surgiu um partido populista que conseguiu ganhar um lugar junto do eleitorado. Acho que os países podem ter mais ou menos abertura em relação ao populismo. Mas os populistas são mais sintomas do que causas, como dizia há pouco. Aproveitam-se da insatisfação, de os cidadãos sentirem que os partidos do sistema não estão a lidar com os problemas. Se queremos evitar o populismo, a primeira coisa a fazer é ver se os partidos tradicionais estão a fazer o seu trabalho. Se estiverem, os populistas têm pouca margem para surgir. Quando falamos de 15%, 20% dos votos, não estamos a lidar apenas com aqueles poucos que estão sempre descontentes, estamos a lidar com um setor significativo da sociedade que está insatisfeito com os partidos tradicionais. Lutar contra o populismo em Portugal, de forma a não seguir o caminho de Espanha, significa que os partidos tradicionais têm de fazer duas coisas. A primeira é dar respostas às preocupações dos cidadãos. A segunda é perceber que o primeiro motivo para as pessoas votarem nos populistas é o sentimento anti-imigração. É complicado. Porque não significa necessariamente que se recusem todos os imigrantes, significa que os problemas ligados à imigração não podem estar no topo da agenda. E voltamos aos partidos tradicionais. Se se aceitam imigrantes, tem de se garantir que acontece da forma mais tranquila possível. Sem ignorar os desafios da integração na sociedade e no mercado de trabalho. Os imigrantes que chegam e são integrados na sociedade e a força de trabalho tendem a gerar muito menos tensão. Se querem manter a imigração como um problema que fica de fora da agenda política, os partidos têm de garantir que conseguem implementar políticas e uma agenda que mantenham a sociedade a funcionar bem e os cidadãos sem receio de que outras pessoas vão ficar com os seus empregos. Se as pessoas sentirem que os partidos tradicionais não estão a fazer isto, irão votar em alguém que lhes prometa soluções mais fáceis.
Entrevista ao Diário de Notícias, 21.09.2020
Sheri Berman é oradora no painel "Democracia liberal e multilateralismo debaixo de fogo" (2 de out. 14h30), na 4ª Conferência de Lisboa.