Todos sabemos que há censura na China, basta ler os jornais do Ocidente. Coisa diferente é perceber como é que a censura chinesa funciona — isso aprendi ao ler Censored, Distraction and Diversion Inside China’s Great Firewall (Princeton University Press, 2018), de Margaret E. Roberts, uma professora de Ciências Políticas da Universidade da Califórnia.
Com base na sua investigação, em dados recolhidos em sites chineses e em fugas de informação do Departamento de Propaganda do Partido Comunista Chinês (PCC), Roberts propõe que a censura na China na era digital é um jogo de ambiguidade e aparente tolerância, cujo grande objectivo é criar “inconveniências” aos cidadãos e dar a ilusão de que há liberdade. O mais eficaz não é proibir, mas distrair. Como? Com fricção e inundação, as principais técnicas modernas de censura da China.
Fricção é tudo o que é feito para dificultar o acesso à informação, coisas simples como enterrar conteúdos no “fundo” da Internet. Em regra, sites, temas ou conteúdos com palavras-chave incómodas ou contrárias aos interesses de Pequim continuam disponíveis. O truque é tornar difícil encontrá-los. Ou porque o acesso à Internet é lento, ou porque a informação não aparece nas primeiras dezenas de listas propostas pelos motores de busca, ou porque o cidadão bate num “muro” e tem de usar a VPN para aceder ao site que procura, o que exige tempo e dinheiro. Tudo isto são fricções e nada disto é por acaso. Na verdade, é tudo programado, explica Roberts. Mesmo a porosidade dos filtros que bloqueiam sites é intencional.
Continua a haver conteúdos apagados e bloqueados na China. Mas como isso é mau para a economia e aumenta o risco de protestos contra o governo, hoje os métodos são mais subtis. Tornar o acesso à Internet lento — exasperadamente lento — é uma técnica eficaz e aparentemente inócua. Quando um site dá “erro” ou “em actualização”, há a ilusão de normalidade, como se fosse um problema técnico temporário. Mas faz afinal parte do sistema Golden Shield Project, conhecido como Grande Cibermuralha da China.
Que não haja dúvida: há páginas e imagens bloqueadas em toda a China, IP chineses impedidos de aceder a sites e os pedidos de acesso dos IP chineses para aceder a sites estrangeiros ficam registados. A questão é outra. “Como o Governo se concentra nos gatekeepers da informação e não nas pessoas, na perspectiva do cidadão comum chinês o sistema de controlo de informação coloca poucos constrangimentos explícitos. Os quiosques de rua vendem dezenas de jornais. Não é óbvio quais são as histórias que foram retiradas e quais são as histórias que os editores foram obrigados a publicar. O acesso à Internet é acessível de forma geral e há um ambiente de redes sociais onde até as críticas ao governo chinês são comuns. Muitos chineses não têm medo da censura. A censura não interfere na vida da maior parte dos cidadãos. Na verdade, muitos cidadãos não sabem sequer da existência de certos tipos de censura.”
As histórias que os editores são obrigados a publicar são a outra técnica comum na censura na era digital. É o flooding: inundar os media com notícias felizes. Nessa inundação, participam vários agentes, entre os quais o Fifty Cent Party (Partido dos Cinquenta Cêntimos), “um exército de comentadores online pagos para repetir propaganda e trabalhar sob instruções do governo para influenciar a opinião pública durante períodos sensíveis”, promovendo “sensações positivas, patriotismo e uma boa imagem do governo”. Há papers académicos que dizem que a China paga a milhares de falsos comentadores.
Quando, a 10 de Dezembro de 2010, Fang Binxing, “pai” da Grande Cibermuralha da China, abriu uma conta no Sina Weibo — o Twitter chinês —, em meia dúzia de minutos o seu mural estava cheio de comentários a criticarem-no e a apelarem a um “cerco” e “vigilância” à conta. “Apesar da velocidade a que os comentários eram censurados, os utilizadores conseguiram passar a mensagem, com posts como: ‘Velho cão, porque não morres?’, ‘Destinado a ser esmagado pela história da desgraça’ e ‘FDP’ (iniciais de palavrão). Ridicularizado, Fang apagou a conta três horas depois”, conta a investigadora. A ilusão criada pela fricção e inundação pode enganar milhões de chineses. Mas não engana todos os chineses.
Bárbara Reis é jornalista do Público e membro do Clube de Lisboa
Artigo publicado originalmente no Público, 01.05.2020