Um pirómano na Casa Branca

Há um problema de violência policial sobre afro-americanos. Há crescimento de crimes de ódio e terrorismo supremacista branco. Há complacência do presidente dos EUA e um trumpismo promíscuo com racismo e autoritarismo. Pelo meio, cem mil mortos pela covid e um ciclo económico radicalmente novo. Desde quando é que a reeleição de Trump se tornou uma fatalidade?

 

Nesse longínquo mês de fevereiro, Trump discursou sobre o estado da união no Congresso. Com o impeachment a horas de ser chumbado, Trump preferiu não mencioná-lo e lá pintou o quadro idílico da economia, mesmo que tenha tomado posse depois de 75 meses consecutivos com o emprego a subir, fazendo de conta que o sucesso da bolsa esgotava a economia real, ou que a dívida federal não disparara à custa de cortes nos impostos que só beneficiaram a classe mais alta e as grandes empresas. O discurso triunfalista de Trump, hiperbólico, assente em falsidades, factos truncados e num egocentrismo enjoativo, seguiu a receita original da campanha de 2016: dirigido à imensidão dos que lhe prestam culto cego, não a todos os americanos. Mesmo num cenário otimista, Trump nunca despiu as vestes de pastor de fação. Entretanto o mundo mudou em três meses e o ciclo económico triunfal inverteu-se de forma lancinante.

Desde que a pandemia se impôs, 43 milhões de americanos caíram no desemprego, que passou de 3,5% para 14,7%. Não há memória de um choque social com esta brutalidade. A contração do PIB foi de 5%, mas o presidente da Reserva Federal já assumiu publicamente o pessimismo de uma queda até 20% nos próximos meses, com o desemprego a poder subir aos 25%, atingindo fortemente as mulheres. Entretanto, os pacotes de emergência financeira federal equivalem a 14% do PIB, embora os bloqueios no Congresso não facilitem a chegada à economia real. As mortes por covid-19 ultrapassaram as cem mil, o que faz dos EUA o país mais fatalmente atingido entre todos. Para termos uma ideia, seria o equivalente a 42 Pearl Harbors ou a 33 11 de Setembros. A resposta de Trump à grande tragédia americana tem sido tripla: fingir que não é assim tão má, jogar golfe e encontrar culpados e teorias da conspiração. Até que há dias um polícia matou sem dó nem piedade mais um afro-americano numa qualquer esquina da América.

Voltemos ao discurso do Estado da União. Passou ao lado das análises, sempre muito centradas na economia, um pequeno pormenor na cerimónia do Congresso. Às tantas, no meio da coreografia previamente ensaiada entre Trump e vários homenageados sentados nas galerias, é atribuída a Medalha Presidencial da Liberdade a Rush Limbaugh, um dos mais famosos radialistas da América, nacionalista ressequido com um dos púlpitos mais execráveis do espaço público. Conhecido pelo culto a Trump, pelo racismo, pelo sexismo e por outros ismos medievais, foi longamente ovacionado pelo presidente e todo o séquito de congressistas que se sentam na bancada daquilo que um dia foi o Partido Republicano de Lincoln. A Medalha Presidencial da Liberdade é a mais alta condecoração dada a civis nos EUA e tem como fiéis depositários pessoas do gabarito de Rosa Parks, Nelson Mandela, John Lewis ou Elie Wiesel. A homenagem a Limbaugh foi o fechar de um ciclo iniciado na campanha de 2016, quando o antigo líder do Ku Klux Klan, David Duke, apoiou Trump publicamente, percorrendo este depois uma continuada indulgência perante uma série de atos graves de grupos supremacistas e neonazis espalhados pelo país.

Com um eleitorado essencialmente branco e masculino, muito dele sensível a uma agenda propositadamente identitária capaz de recuperar um imaginário de pureza rácica misturado com fundamentalismo religioso, Trump acabou por legitimar a normalização de milícias populares organizadas com capacidade para patrulhar cidades ou entrar em parlamentos estaduais sem que nenhuma "lei e ordem" os pusesse no devido lugar. A estratégia política de dividir para reinar, falando apenas para os seus (são ainda 40% os que o apoiam), desprezando tudo e todos, foi sempre acomodatícia do crescimento dos crimes de ódio raciais (35% desde 2017) levados a cabo por grupos organizados e perfeitamente identificados de supremacistas brancos (The Base, Patriot Front, Identity Evropa, Vanguard America, Atomwaffen Division ou National Alliance), responsáveis também pelo aumento de 180% de propaganda racista e nacionalista nos últimos três anos, muito concentrada em campus universitários em estados como a Califórnia, Virginia, Colorado, Texas, Illinois ou Carolina do Norte.

Como testemunhou em fevereiro na Câmara dos Representantes o diretor do FBI, Chris Wray, há uma radicalização em curso em todos os estados que aponta para pequenas células doutrinadas e treinadas para a promoção do colapso rápido da estabilidade do país ("aceleracionismo"), montado num ódio profundo às minorias negra, latina e judaica, o que levou a agência a ter mais de mil investigações em curso. Charleston, El Paso e Pittsburgh são três exemplos do que este terrorismo branco é capaz de fazer. E é mesmo ele que está no topo da criminalidade nos relatórios federais, sem que possa ser tratado como tal, por falta de enquadramento legal.

Esta relação promíscua entre o trumpismo e o nativismo radical supremacista foi aliás muito alimentada pela teoria lançada por Trump de que Obama não tinha nascido nos EUA e que a sua eleição não tinha passado de uma fraude. Esta fixação conspirativa, que durou longos anos e se tornou incómoda para a Casa Branca, vem na senda de outras obsessões de Trump com o seu antecessor. Tudo o que tinha sido alcançado acabou rasgado, de Cuba ao Irão, do Obamacare aos acordos comerciais transatlântico e transpacífico.

Até a reforma policial de 2015, trabalhada por uma comissão independente e pela titular da pasta da Justiça, Loretta Lynch, passou à história mal Donald Trump tomou posse, na mesma lógica de terraplanagem ao que herdara. Uma reforma que, entre outros aspetos, procurava monitorizar o comportamento agressivo dos agentes policiais sobre minorias, motivar uma relação mais cooperativa do que punitiva com as comunidades, limitar o acesso a material militar e gerar informação mais sólida e transparente desde o poder local, que tutela a maioria dos 18 mil departamentos policiais do país, até ao poder federal. Não sendo perfeita, era uma proposta que identificava problemas sistémicos e graves, entre eles a violência gratuita e o constante abuso de poder contra afro-americanos.

Em outubro de 2019, o líder sindical da polícia de Minneapolis, cidade onde George Floyd seria barbaramente sufocado até morrer, discursava num comício de Trump, incendiando as massas com tiradas anti-Obama e elogios incontidos ao atual presidente por ter enterrado a reforma policial. Promiscuidade, fanatismo e violação sistemática da separação de poderes é a trilogia que define a administração Trump ou, se preferirem, o regime Trump.

Com a Casa Branca cercada por vedações, militares e grupos paramilitares não identificados a patrulhar as ruas de Washington, atirando sobre manifestantes pacíficos para que Trump pudesse fazer o papel de caudilho com a Bíblia na mão, ao mesmo tempo que as chefias militares se demarcam dos apelos presidenciais mais incendiários, a América chega ao final do primeiro trimestre da pandemia de rastos, esgotada, partida, em ferida aberta. Para 40% dos americanos, Trump é a cura; para a maioria é um pirómano descontrolado. Até 3 de novembro, estes têm de resistir e, nesse dia, votar em massa, caso contrário 2016 pode repetir-se. Não pelo sucesso da réplica da estratégia nixoniana de 1968, mas pela demissão dos que se lhe opõem.

A democracia americana não aguenta mais quatro anos de Trump.

 

 

 

Bernardo Pires de Lima é Investigador universitário e membro do Clube de Lisboa.

Artigo publicado originalmente no Diário de Notícias, 06.06.2020

Imagem: Máscara de Donald Trump em Washington DC. Foto de Darren Halstead em Unsplash