O livro do compadre John Bolton

O livro tornou-se importante, não pelo seu conteúdo, mas pelas reações que provocou na sociedade americana, em particular nos seus opositores políticos e na comunicação social.

 

O provérbio “zangam-se as comadres, descobrem-se as verdades” necessita de ser adaptado ao caso em apreço. Impossível de ser reproduzido numa linguagem de género neutra e evitando molestar alguém optámos por “zangam-se os compadres, descobrem-se as verdades”. Falamos, claro, do livro da autoria de John Bolton (“The Room Where it Happened”), centrado nas suas divergências com Donald Trump sobre política externa, e não só, no tempo em que desempenhou as funções de Conselheiro Nacional de Segurança (abril 2018-setembro 2019).

Sempre ligado a acontecimentos menos recomendáveis, Bolton é das figuras mais sinistras que passaram pelo establishment da política externa norte-americana. Opôs-se à indemnização dos americanos de origem japonesa prisioneiros em campos de internamento, durante a Segunda Guerra Mundial; esteve envolvido no escândalo Irão-Contras; apoiou a guerra no Iraque e a intervenção militar na Líbia; é um feroz opositor do Tribunal Penal Internacional (apenas quando se trata de cidadãos americanos).

Poderíamos acrescentar muitos outros factos. De uma coisa estamos certos, se Trump tivesse dado ouvidos a Bolton, os EUA tinham-se envolvido em operações militares de mudança de regime no Irão, Síria, Venezuela, Cuba e Coreia do Norte. Não são difíceis de antever as consequências dessas aventuras.

O seu comportamento nem sempre andou alinhado com as suas convicções políticas. O fervoroso apoio à guerra do Vietname não o impediu, assim como a George W. Bush, de se esquivar à guerra recorrendo a adiamentos e ao cómodo alistamento na “Guarda Nacional”. Na linha dos Haredi, o grupo judeu ultra-ortodoxo que é contra o serviço militar dos seus membros, mas que apoia as ações militares israelitas contra os palestinianos na Cisjordânia.

À “consistência” ética associa-se a deslealdade. Como Secretário de Estado Adjunto, Bolton sabotou as negociações com a Coreia do Norte (2004) promovidas por Colin Powell, voltando a fazê-lo com o Presidente Trump (2018). Sonegou a Powell e à sua sucessora Condoleeza Rice informação crucial para atingir os seus objetivos políticos pessoais. Já em 2019, conjuntamente com Benjamin Netanyahu e Mike Pompeo, sabotou as tentativas de Trump para abrir canais diplomáticos com o Irão.

O livro tornou-se importante, não propriamente pelo seu conteúdo, mas pelas reações que provocou na sociedade americana, em particular nos seus opositores políticos e na comunicação social. Como foi possível atribuir credibilidade a um acerto de contas ressabiado – Bolton não consegue esconder esse estado de alma – apenas para bravata política?! Não nos preocupa o frenesim criado à volta da hipotética existência de matéria classificada, nem os ataques pessoais a Trump ou as conversas que pessoas educadas não devem reproduzir.

Contudo, não nos deixa de causar perplexidade o facto de os opositores de Trump alinharem na utilização da lavagem de roupa suja de Bolton, insistindo numa política de casos, em que tudo o que vier à rede é peixe. É baixar a política ao nível das catacumbas. O debate deve ser feito com elevação. E já agora com ideias inovadoras que reflitam um pensamento estratégico coerente, em vez de se insistir em propostas que provaram ser inúteis e até mesmo nefastas. Sobre esta matéria, o partido Democrata tem ainda um longo caminho a percorrer.

 

 

Artigo publicado originalmente no Jornal Económico, 17.07.2020

Carlos Branco é Major-general, Investigador do IPRI-NOVA e membro do Clube de Lisboa

Imagem:  Foto de rob walsh em Unsplash