Que não tenha acontecido uma terceira guerra mundial é o mais extraordinário destes 75 anos, celebrados neste sábado, da rendição anunciada por Hirohito aos japoneses, que pela primeira vez ouviam, via rádio, a voz do imperador. Naquele 15 de agosto de 1945, dias depois das bombas americanas sobre Hiroxima e Nagasáqui, o Japão aceitava a derrota, algo que a sua aliada Alemanha tinha já feito na frente europeia a 8 de maio. Sinal do que viria logo de seguida, americanos e soviéticos olharam para um mapa da Coreia na revista National Geographic e decidiram que o Paralelo 38 serviria para distinguir a quem o exército japonês baseado na península se renderia.
Não são só as duas Coreias que até hoje nos recordam como o mundo em que vivemos ainda é muito ditado pelos acontecimentos de 1939-1945, essa guerra com que Hitler quis fazer da Alemanha a senhora da Europa, arrastando consigo a Itália de Mussolini, e na qual o Japão pretendeu também conquistar a Ásia, aproveitando a guerra civil na China e a debilidade das potências coloniais europeias. Olhe-se para o Conselho de Segurança das Nações Unidas e parece até que o mundo está congelado desde 1945, pois os únicos países com direito de veto são os cinco vencedores oficiais da Segunda Guerra Mundial, todos eles membros permanentes do órgão.
Existem as fotos de Roosevelt, Estaline e Churchill em Ialta (fevereiro de 1945) para nos lembrar que foram estes três líderes e os seus países os responsáveis máximos pela vitória dos chamados Aliados sobre as potências do Eixo. Sem o Dia D, sem a Operação Bagration, sem a Batalha de Inglaterra, é difícil imaginar a derrota nazi. "Nem os EUA nem a URSS e muito menos o Reino Unido teriam conseguido derrotar a Alemanha sozinhos", afirma o historiador Luís Nuno Rodrigues em entrevista publicada neste sábado no suplemento 1864 do DN. Somemos o contributo da França Livre do general De Gaulle, também das tropas chineses, tanto as comunistas de Mao como as do Kuomintang, e teremos o leque de grandes vencedores, mas pode ainda somar-se vários outros países, desde o Canadá e a Austrália ao Brasil, único latino-americano que enviou soldados combater na Europa, os célebres pracinhas do CEB (Corpo Expedicionário Brasileiro) que se distinguiram no combate aos alemães em Itália.
Existem, porém, também as fotos de Potsdam, a cimeira realizada na Alemanha já depois do suicídio do Führer e terminou dias antes do terrível golpe final ao Japão. Roosevelt morrera e fora substituído por Truman, Churchill perdera as eleições e teve de ceder o lugar a Atlee, só Estaline permanecia inamovível. Mas mais do que a mudança de rostos, óbvia, em Potsdam aprofundavam-se as desconfianças, menos óbvio, e aceleravam-se estratégias para o pós-guerra. A Guerra Fria vinha a caminho, como a divisão da Coreia mostrava e a persistência das diferentes zonas de ocupação da Alemanha e também de Berlim confirmaria bem depressa.
Com a Europa Ocidental destruída e a Ásia Oriental de rastos, só contavam americanos e soviéticos. E com grande vantagem inicial para os primeiros, pois nem o sucesso da expansão comunista no Leste Europeu tranquilizou Estaline, consciente de que o arsenal atómico (depois nuclear) definiria de futuro a hierarquia dos poderosos. Com recurso à espionagem, mas também com mérito de grandes cientistas como Igor Kurchatov, a União Soviética dotou-se da bomba em 1949 e com o equilíbrio do terror estava mais ou menos garantido que a Guerra Fria nunca se tornaria guerra quente.
Houve mesmo assim momentos em que o mundo correu perigo de uma guerra mundial: a crise dos mísseis de Cuba em 1962 é talvez o mais evidente, mas quantas vezes não terá havido a tentação, de um lado ou do outro, de mostrar músculo, ou seja usar os arsenais nucleares que ainda hoje americanos e russos têm, e que também possuem, em quantidades mais pequenas, Reino Unido, França, China, Israel (que continua a negar), Índia, Paquistão e Coreia da Norte. Foi o bom senso das lideranças que prevaleceu, mais tarde chamado détente, assim como igualmente um esforço de mediação das Nações Unidas para evitar choques diretos. E, assim, a Guerra Fria foi travada fora da Europa e da América do Norte, tornando-se parte interessada no processo de descolonização de África e Ásia, igualmente nas lutas revolucionárias e contrarrevolucionárias da América Latina.
Na década de 1980, o sistema soviético mostrou-se finalmente incapaz de competir com o capitalismo dos Estados Unidos e Mikhail Gorbachev, que tentou uma reforma interna que salvasse o comunismo, falhou. O Muro de Berlim caiu, os movimentos anticomunistas na Europa de Leste impuseram-se, seguindo o exemplo do polaco Solidariedade, e a URSS acabou por se desintegrar, emergindo de novo a Rússia. Também o Pacto de Varsóvia acabou, abandonado pelos seus membros, bem depressa candidatos à NATO.
O mundo não se tornou subitamente pacífico com o fim do conflito entre blocos: nos anos 1990, desde o massacre de Santa Cruz em Timor à Guerra na Bósnia, passando pelo genocídio no Ruanda ou o terror jihadista na Argélia, não faltaram tragédias. Mas americanos e russos dialogavam, renovavam tratados de desarmamento e de não-proliferação, Bill Clinton e Boris Ieltsin até pareciam velhos amigos. E a China, com uma economia galopante desde 1980, ainda não era vista como ameaça por ninguém, o seu orçamento militar mínimo perante as outras potências, nada comparável ao atual, de mais de 200 mil milhões de dólares, só inferior ao dos Estados Unidos.
Há anos que são pontos de viragem: 1945, fim da Segunda Guerra Mundial e fundação das Nações Unidas; 1949, bomba atómica soviética e criação da NATO (com Portugal entre os fundadores e com o historiador António Costa Pinto a afirmar que "sem a Guerra fria e a divisão do mundo em dois blocos antagónicos é bem possível que o salazarismo não tivesse sobrevivido"); 1991, fim da União Soviética; 2001, atentados do 11 de Setembro contra os EUA. Talvez devêssemos incluir 2000 e a eleição para presidente do russo Vladimir Putin, juntamente com a ascensão da China a quase-superpotência, e o esforço americano para preservar a hegemonia, o fator mais definidor do triângulo estratégico que rege o mundo em 2020. A União Europeia, ainda mais depois do Brexit, tem dificuldade em fazer-se ouvir como potência.
De um lado temos a América de Donald Trump a querer ser grande de novo mas ao mesmo tempo a renunciar à liderança do chamado Mundo Livre, do outro a China de Xi Jinping cada vez mais afirmativa na cena internacional, graças ao projeto Uma Faixa, Uma Rota, mas também a um investimento nas Nações Unidas; e a Rússia de Putin, sem grandes recursos financeiros, mas capaz de influenciar da Síria à República Centro-Africana e de manter em sentido os novos membros da NATO a leste que dependem do seu abastecimento energético, isto sem abdicar do poderio nuclear, com tantas ou mais ogivas do que os Estados Unidos, e de outras estratégias de poder, desde os ciberataques às manipulações nas redes sociais (em que está muito bem longe de ser ator solitário). Se o triângulo fosse um quadrado, mais do que a UE, seria para incluir o jihadismo global, temporariamente em baixo depois da derrota do Estado Islâmico.
Que a competição dentro do triângulo não traga a tal terceira guerra mundial é um desejo geral, pois da covid-19 ao aquecimento global já sobram os desafios. Até porque, como se teme desde agosto de 1945, essa terceira guerra poderá muito bem ser a última e pela pior das razões: a destruição da vida no planeta através das armas nucleares. Olhemos então de novo para a outra novidade de 1945, bem mais benévola, as Nações Unidas, hoje com o português António Guterres à frente. É certo que tem de ser atualizada, Japão e Alemanha, derrotados que hoje são colossos económicos e democráticos, tal como Índia e Brasil, merecem ter outro peso na organização. Mas sobretudo, como escreve o ministro Augusto Santos Silva também no suplemento 1864 deste sábado, "a ideia que presidiu à fundação das Nações Unidas - consolidar a paz através da cooperação entre os povos - é de uma gritante atualidade. Convém defendê-la, com firmeza e inteligência, mas também com capacidade de adaptação ao nosso tempo". Aprendamos com o passado recente.
Leonídio Paulo Ferreira, diretor do Diário de Notícias e membro do Clube de Lisboa
Artigo publicado originalmente no DN, 15.08.2020
Imagem: Líderes das potências aliadas na II Guerra Mundial encontram-se em Ialta, fevereiro de 1945. Fotografia de UN Photo.