Foi uma convenção atípica, mas nem por isso desprovida de foco. Ele não passa nem por políticas públicas que dividam os democratas ou por ressuscitar traumas de primárias passadas. Isso ficará para depois. O que importa é fazer tudo para tirar Trump da Casa Branca. E Joe Biden é, sem entusiasmos de maior, quem conseguiu pragmaticamente coser as várias alas democratas.
A comparação com a convenção democrata de 2016 faz algum sentido. Há quatro anos, o partido reuniu-se em Filadélfia após dois mandatos de Obama na Casa Branca. A Pensilvânia era um valor seguro no colégio eleitoral desde 1992, de tal forma que Hillary Clinton pouco lá esteve na campanha, e Trump era uma figura demasiado excêntrica para ser encarado com seriedade (acabaria por vencer ali por 44 mil votos). Os democratas estavam mais importados em fazer as pazes entre os apoiantes de Bernie Sanders e de Clinton do que em considerar com realismo as hipóteses de eleição do candidato republicano. E foi assim que a reunião magna, com a cenografia habitual dos grandes eventos políticos americanos, ficou marcada pelos apupos à nomeada do partido no momento em que Sanders lhe declarou o apoio. As feridas nunca iriam sarar e a campanha eleitoral ressentir-se-ia disso. O resto é história.
Hoje, o ambiente é outro. O Wisconsin, onde a convenção oficialmente teve lugar (mesmo que totalmente virtual devido à pandemia), por certo não será desprezado por Joe Biden, sendo um dos estados que definirão o resultado em novembro. Não é à toa que Trump lá esteve nesta semana num comício nada virtual: ambos sabem onde tudo se jogará e ninguém cometerá o erro de desvalorizar eleitores num qualquer subúrbio da América que decide.
Ao aceitar a nomeação democrata, Biden encerrou uma semana em que o partido apontou toda a artilharia a Trump e fez o pleno numa espécie de coesão pragmática indispensável entre Sanders, Ocasio-Cortez, Warren, Obama e Colin Powell. Esta frente anti-Trump, que precisa de mobilizar como nunca anteriormente a heterogénea plataforma democrata - a imensidão do voto étnico, feminino e a creative class - e acrescentar-lhe a angústia dos novos eleitores nascidos depois do 11 de Setembro, e os independentes e republicanos com uma raiva incontida contra Trump e tudo o que ele representa.
A grande lição desta convenção é que a estratégia passará por fazer da eleição de novembro um referendo existencial ao trumpismo: caucionar a guerrilha que provoca ou tentar estancá-la; punir a gestão danosa da pandemia (170 mil mortos e 50 milhões de desempregados) ou aprová-la; restituir decência e normalidade à Casa Branca ou cavar o fosso onde se encontra.
É este o eixo pragmático que cola a federação ideológica do partido democrata, não é a grelha de propostas políticas de Joe Biden. Inteligentemente, beneficiando da ausência de um auditório com milhares de almas imprevisíveis, a mensagem pode alinhar-se sem ruído de maior em redor do objetivo principal: derrotar Trump para então depois se articular um plano legislativo minimamente cosido. O inverso mergulharia os democratas numa autofágica luta ideológica, absolutamente desgastante e potencialmente perdedora. Os tempos não estão para grandes sofisticações.
É preciso correr com Trump e a sua quadrilha, repor a ordem constitucional, a normalidade democrática, o prestígio das instituições, os arranjos internacionais, enfrentar a maior crise do pós-Guerra e, depois, legislar com as condicionantes existentes. Para as conhecer é ainda preciso saber a composição do Congresso saído das eleições marcadas para o dia das presidenciais, no qual toda a Câmara dos Representantes irá a jogo, bem como um terço do Senado. Se as duas caírem para os democratas, o que não é impossível, então o processo legislativo pode acomodar com outra certeza algumas reivindicações da ala progressista do partido.
A experiência de Biden no Senado não é, neste contexto, irrelevante. Foi ele quem nos anos de Obama conseguiu forjar por várias vezes um consenso mínimo bipartidário, beneficiando da saudosa existência de alguns republicanos sensatos, coisa que hoje manifestamente não existe. Isso dificulta a tarefa, daí a necessidade de olharmos para as próximas eleições de forma mais abrangente. Vai ser impossível, como já ficou provado nos últimos meses, fazer aprovar os astronómicos pacotes de assistência rápida à economia e ao emprego sem um alinhamento entre as duas bancadas no Congresso.
O mesmo se passa para o cíclico plano de triliões para renovar as infraestruturais nacionais, cada vez mais expostas nas suas fragilidades. Ou em matérias de realinhamento externo, nomeadamente assinaturas de acordos, com incidência comercial ou climática, ou num reinvestimento em organizações internacionais. Sem essa viragem democrática a toda a linha, como conseguiu Obama em 2008, será difícil a Biden consolidar a coesão no partido, mesmo chegando à Casa Branca.
Há quem diga que Obama esteve para JFK como Biden poderá estar para Lyndon Johnson: os primeiros criando a liturgia da mensagem política inovadora, os segundos, legisladores experientes, cumprindo na prática o caminho aberto pelos seus antigos números um. Pode fazer algum sentido a analogia, apesar de os primeiros merecerem bem mais crédito do que apenas a qualidade discursiva que trouxeram. Além disso, para que a segunda parte da comparação venha a ter cabimento, vai ser preciso fazer muito mais do que receber de bandeja a nomeação no Air Force One.
Fazer o pleno para a Casa Branca e o Congresso é uma missão tão exigente como a campanha suja que já aí corre. Da nova versão do certificado de nascimento (agora de Kamala Harris) ao não reconhecimento de uma eventual derrota, passando pela destruição propositada do serviço de correio nacional como suporte indispensável de uma votação sem mácula, a todo o manancial de teorias da conspiração, alimentadas à exaustão pelo próprio Trump apenas para incendiar a cadeia de ódio que o entusiasma e, com isso, mobilizar o culto que sobre si ainda prevalece em muitas partes significativas da América.
Não vai ser bonito. Mas por vezes é preciso passar pelo inferno para se dar outro valor à democracia, e sobretudo salvá-la. É isso que está em jogo nestas eleições americanas. Só por isso, Joe Biden merece o reconhecimento antecipado de qualquer democrata que se preze.
Bernardo Pires de Lima, Investigador universitário e membro do Clube de Lisboa.
Artigo originalmente publicado no Diário de Notícias, 22.08.2020
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