“...ministers come and go, even dictators die, but mountain ranges stand unperturbed.” - Nicholas Spykman
A ideia da construção de um canal, na zona de Kra, tem estado sempre na mente das principais potências navais, uma vez que permitiria ultrapassar o perigoso chokepoint[i] de Malaca e poupar, pelo menos, 648 milhas náuticas (NM) (1200 km) de navegação entre os Oceanos Índico e Pacífico.
No seculo XIX a Inglaterra chegou a negociar com o Rei do Sião, Rama I, a escavação de um canal ligando Ranog a lung Suan. O projeto, excessivamente ambicioso, foi abandonado. Mais tarde, os franceses avançaram com uma proposta similar apresentada ao Rei Rama II, que a rejeitou. Ainda nesse século, ingleses e franceses renovaram as suas pretensões junto de Rama V, mas sem sucesso.
Nos últimos anos tem sido a República Popular da China (RPC) a fomentar, junto das autoridades tailandesas, a ideia da construção do canal, oferecendo auxílio técnico e financiamento. Percebe-se este interesse se considerarmos que o estreito de Malaca é, essencialmente, controlado pelos Estados Unidos das América (EUA) e seus aliados e que por aí, transita, fundamentalmente, o petróleo que é a energia vital da economia chinesa, já que, sem ele, se veria significativamente paralisada e mergulhada em grandes dificuldades internas e externas.
Importância estratégia do estreito de Malaca
O estreito de Malaca é um dos principais pontos de estrangulamento mundiais, sendo aí relativamente fácil, com recurso à forca se necessário, impedir ou restringir severamente a passagem de transito marítimo a adversários ou inimigos. O controlo militar de um estreito mede-se pela capacidade de o fechar, interditando o tráfego marítimo e lançando o caos na economia dos países a quem o transito fica, doravante, interdito ou limitado.
A profundidade média do estreito de Malaca, ao longo dos seus quase 460 NM de extensão, é de cerca de 25 metros. O estreito tem a forma de funil na direção NW-SE, i.e., passa de uma largura de cerca de 27 NM a um mínimo de apenas 20.5 NM. Esta estreita e alongada faixa marítima fica encravada entre a península malaia, a norte, e a ilha de Sumatra, a sul.
Ao longo do estreito existem numerosas ilhas. No extremo sul, fechando o estreito, temos o Norte de um conjunto de 63 ilhas separadas da península malaia pelo estreito de Johor (existem já duas pontes a ligar a ilha principal à península) e a Sul as ilhas Riau; a largura do estreito e, aí, na zona de Singapura, de apenas 8,6 NM. Esse é, pois, o ponto de especialmente propício para negar a passagem a “indesejados”. Durante a II Guerra Mundial os ingleses minaram essa zona, numa tentativa de negar o acesso, por parte de potências opositoras, ao estreito de Malaca.
Em 2017, transitaram mais de 84 mil cargueiros e petroleiros pelo estreito de Malaca- uma média de quase 10 grandes navios por hora[ii]. Aí passa 30% de todo o comércio mundial marítimo e também um terço do petróleo transportado por via marítima-cerca de 15 milhões de barris por dia. Mais de 90% do petróleo importado pelo Japão e pela Coreia e parte muito significativa do abastecimento energético da China segue por essa rota. O encerramento do estreito significaria o caos na economia asiática e grandes perturbações na economia mundial. é, pois, um local de primeira importância no xadrez geopolítico mundial.
O estreito de Malaca é partilhado por dois Estados muçulmanos, a Indonésia e a Malásia, e por uma pequena, mas rica e poderosa cidade estado- Singapura. Na entrada ocidental do estreito há ainda que contar com a Tailândia, através da sua ilha de Phuket. Mas as potências controladoras\dominantes são os EUA e seus aliados ingleses e australianos, que aí mantêm forças militares robustas.
Americanos herdam controlo militar dos ingleses
Os quatro Estados do sudeste asiático que bordejam o estreito de Malaca têm enfrentado, não só problemas de ordem interna, mas também de ordem externa por vezes tensos, entre si. Recorde-se o período da Konfrontasi entre a Indonésia e a Malásia, com a primeira a treinar guerrilheiros contrários ao Governo malaio, mas também a insurgência comunista malaia que operava a partir de bases na Tailândia.
A Indonésia enfrentou ou enfrenta movimentos rebeldes, em Aceh (que pretendiam criar uma república independente), em Kalimantan (que pretendem incorporar o território, e o Brunei, na Malásia), em Minahasa (predominantemente católica), na Papua Ocidental (para unificação da ilha) e em Riau (movimento independentista).
A Malásia ainda tem de fazer frente a movimentos independentistas em Sarawak e em Sabah. A Tailândia está a braços com o separatismo da região de Pattani, onde o movimento islâmico armado continua a atuar.
Não obstante as sérias divergências entre os três estados, Singapura, Malásia e Indonésia, em termos de segurança tem sido possível alguma cooperação. Para além do patrulhamento conjunto do estreito, da luta contra a pirataria e da partilha de informação, estas nações puseram de pé um sistema de controlo eletrónico de navegação no estreito- o STRAITREP[iii].
Porém, o EUA mantém uma forte presença no estreito e patrulham intensamente a região, através de meios da sua 7 esquadra[iv], que opera quer a partir de Diego Garcia, quer de outras bases partilhadas com as Forças Armadas de Singapura- principalmente Paya Lebar e a base naval de Changi no estreito de Johor. A Austrália tem um base militar em Butterworth, na Malásia. Os ingleses, por seu turno, dispõem de uma base naval no porto de Sembawang, em Singapura.
É, pois, nesta região, plena de diversidade, rica de culturas, com línguas e religiões diferentes, atravessada por conflitos inter e intra estatais, que se situa no estreito de Malaca, fonte de riqueza para a Malásia, a Indonésia, e principalmente, Singapura. A eventual construção de um canal no estreito de Kra na Tailândia, ligando os dois oceanos, alteraria profundamente as dinâmicas regionais: não só colocaria a Tailândia como potência local predominante, mas também implicaria um certo declínio para Singapura, a Malásia e mesmo a Indonésia.
Racionalidade económica da construção do canal de KRA
A construção de um caminho de ferro entre a China e a Europa, no âmbito da Nova Rota de Seda, despoletou um debate sobre a rapidez de transporte entre a Asia e a Europa por ferrovia e por via marítima, colocando muita pressão em economias exportadoras de bens como a japonesa ou a coreana. As companhias de transporte marítimo procuram agora explorar todas as possibilidades de reduzir milhas e dias de navegação nos trânsitos. O canal de Kra poderia poupar 648 NM e até 3 dias de navegação, “cutting the cost of a 100,000-ton cargo ship voyage by about 300,000$”[v].
O canal atrairia igualmente os maiores e mais modernos navios e mesmo os superpetroleiros, que não podem passar pelo estreito de Malaca e se vêm obrigados a passar por Lombok, bastante mais a sul. Evitando Lombok, as poupanças seriam da ordem dos 3 500 Km e até 5 dias de navegação.
O número de navios que atravessam o estreito de Malaca está a aproximar-se rapidamente do ponto de saturação o que pode ser um sério problema para o desenvolvimento económico da generalidade dos países asiáticos, incluindo os que dele mais diretamente beneficiam (Singapura, Malásia e Indonésia).
Para a Tailândia, é uma oportunidade para a instalação e desenvolvimento de indústrias navais, e de logística, que são fontes de prosperidade em Singapura e na Malásia. Logo a partir das primeiras escavações seriam expectáveis, localmente, surtos industriais e económicos.
Mianmar e o Vietname também lucrariam, ao reposicionarem os seus portos em concorrências diretas com Singapura, fruto das vantagens derivadas da proximidade das entradas e saída do canal. Também o Laos sairia a ganhar; sendo um país encravado, todo o seu comércio externo passa pela Tailândia, que passaria a dispor de melhores infraestruturas. Ter-se-ia assim um impacto positivo em grande parte do Sudeste Asiático[vi].
Tudo indica, pois, que a construção do canal de Kra tem por trás uma poderosa racionalidade económica, para além das razoes securitárias de que a China, seguramente, usufruirá ao reduzir a sua exposição ao estreito de Malaca- vital para a sua economia e para o seu abastecimento energético, mas dominado pelos EUA.
Exequibilidade
A Tailândia, o estado que mais tem a ganhar com o canal, não tem nem recursos financeiros, nem humanos, para, por si só, o construir. Assim terá sempre de recorrer a investimento estrangeiro. O único país que, nesta matéria, tem simultaneamente músculo financeiro e, objetivamente, um interesse coincidente com a Tailândia na abertura do canal, é a RPC.
A escavação e construção do canal é, em si mesma, um forte desafio de engenharia, embora perfeitamente ao alcance da tecnologia atual.
Vencedores e perdedores
A construção do canal dará sempre azo a vencedores e perdedores. Do lado dos vencedores alinharão: a Tailândia, que se a afirmará como a potência económica da região, vendo o seu poderio consideravelmente aumentado; a China que se libertara dos constrangimentos do estreito de Malaca; países próximos como o Mianmar, o Laos e o Vietname; que sairão beneficiados do ponto de vista económico; e ate o Japão, a Coreia e mesmo as Filipinas e Taiwan, ao poderem beneficiar da redução do custo do transporte de energia e do transporte marítimo dos seus produtos para a Europa e para a Asia ocidental.
Do lado dos perdedores alinharão: a Malásia e Singapura, dado o impacto negativo, significativo, do canal nas economias, e principalmente os EUA, ao perderem a capacidade de estrangular o comércio e abastecimento energético chinês, japonês e coreano. Tal acarretara uma séria perda de influência dos EUA na região.
Duelo em curso
Temos assim que duas realidades geográficas, um estreito e um istmo, geograficamente contíguas embora politicamente separadas, disputam entre si a supremacia na ligação entre os Oceanos Índico e Pacífico. Até hoje a paisagem natural, o estreito, tem prevalecido, porque o istmo para se construir como alternativa, tem de ser aberto e nele construído, com custos elevados, um canal.
Este duelo, aqui definido como uma contenda ou conflito entre duas entidades, assume diversos níveis de relevância desigual. Num nível mais macro, o duelo insere-se no contexto de uma crescente competição entre a China e os EUA; num nível médio, corresponde ao embate entre a Tailândia e outras potências locais pela liderança do sudeste asiático; finalmente a nível micro, dará azo a uma luta pela atracão de indústrias de construção e reparação navais, de serviços de logística e transportes e de todo um cluster ligado ao mar.
A estratégia dos apoiantes do estreito tem sido a mesma ao longo dos séculos: impedir a construção do canal. Para isso tem recorrido a todo o tipo de armas- diplomáticas, económicas e políticas. Até ao início do seculo XXI, as potências com capacidade financeira e técnica para fazer a gigantesca obra dominavam, de uma forma ou outra, o estreito, pelo que a sua motivação era baixa.
A partir de finais do século XX, a emergência da RPC como potência económica exportadora, mas dependente da importação de hidrocarbonetos, cuja rota passa pelo estreito dominado por potências hostis, veio alterar os dados da equação. Surgia um Estado com real motivação e com músculo financeiro e técnico para levar a cabo esse desígnio.
Em simultâneo, a globalização veio colocar enorme pressão sobre o estreito que viu o tráfego crescer de forma robusta nas últimas décadas, aproximando-se do ponto de saturação. Acresce que o transporte marítimo, da Asia para o Medio Oriente e para a Europa enfrenta hoje a concorrência do caminho de ferro modernizado e alargado no âmbito da rota de seda. Finalmente, a cada vez maior importância dos navios de grande dimensão, cujo calado não permite a circulação no estreito de Malaca. A simples racionalidade económica empurra para a construção do canal, que daria uma nova competitividade ao transporte marítimo, diminuindo custos e tempos de transporte das mercadorias.
Pressões internacionais têm impedido a Tailândia de tomar uma decisão definitiva em relação a este dossier. As divisões políticas internas, a presença de um conflito separatista no seu território, de alguma forma apoiado pela Malásia e um sistema político prisoneiro de um ciclo ditadura militar- democracia (até 2014) - ditadura militar muito contribuem para essa paralisia.
O recente retorno a democracia na Tailândia (no seguimento das eleições de 2019 que, porém, não levaram ao fim completo do regime militar), a situação de congestionamento do estreito, o apoio da China, são elementos que podem contrariar a estratégia, até hoje bem sucedida por parte dos apoiantes do estreito, de impedir o istmo de se dotar de um canal. Se assim for, o duelo termina e abrir-se-á uma fase de coexistência das duas rotas marítimas.
Conclusões
Com uma justificação económica poderosa- a saturação do estreito de Malaca e o desenvolvimento económico que propiciaria a grande parte do Sudeste Asiático- o canal de Kra acabara, seguramente, por se concretizar. A questão que se coloca é de saber se será iniciado nos próximos anos, em resultado duma resolução firme e definitiva da Tailândia, ou se este país continuará a ceder as pressões americanas e dos estados do estreito, protelando uma decisão favorável.
Não tendo a Tailândia os meios, financeiros e humanos, necessários, precisa de um parceiro que a apoie neste empreendimento e dimensões gigantescas. A RPC surge como a única alternativa; tem músculo em termos de capitais e de recursos humanos especializados e tem vontade em construir uma alternativa que lhe permita evitar o estreito de Malaca e garantir a segurança do seu abastecimento energético e do seu comércio marítimo com o Médio Oriente e a Europa.
A concretizar-se a construção do canal, ele levará a uma alternação relevante no equilíbrio de força no sudeste asiático, com a Tailândia a assumir um papel mais preponderante, a China a aumentar a sua influência e, em contrapartida, assistir-se-á a um declínio de Singapura e da Malásia e a uma redução da influência americana em toda a Asia.
A composição do governo será sempre decisiva para determinar se a Tailândia avança ou se continua a adiar o projeto que poderá moldar seu futuro por muitas décadas.
Jorge Fonseca de Almeida, Doutorando em Sociologia e membro do Clube de Lisboa
Artigo originalmente publicado na Revista da Armada, Nº 554 • ANO L, agosto de 2020.
Notas
[i] Expressão anglo-saxónica designadora dum ponto de estrangulamento geográfico em ambiente marítimo.
[ii] Este valor tem vindo a crescer nas últimas décadas (SeaNews, 2018)
[iii] Acrónimo de Ship Reporting System in the Strait of Malacca and Singapore
[iv] A Seventh Fleet, em termos de meios de combate, é constituída por 50 a 70 navios e submarinos e 140 aviões. Em terra e no mar dispõe dum efetivo de 20.000 marinheiros. Conta ainda, em prol da sua autossuficiência, com cerca de 50 navios de apoio logístico, quer próprios quer contratados, na sua maioria baseados em Singapura.