Refletir na desordem

Quando o mundo, no final da segunda Guerra Mundial, se organizou institucionalmente em torno das Nações Unidas, ficou criada a ideia, do seu lado ocidental, de que os modelos democráticos, nas suas diversas expressões, a que alguns chamavam liberais, acabariam por funcionar como uma espécie de “benchmark”, para o qual, cedo ou tarde, a maioria dos Estados tenderia a evoluir.

World map in black with red dots in major cities in Europe, Americas, Africa and Asia

Photo by Martin Sanchez on Unsplash

REFLETIR NA DESORDEM

Quando o mundo, no final da segunda Guerra Mundial, se organizou institucionalmente em torno das Nações Unidas, ficou criada a ideia, do seu lado ocidental, de que os modelos democráticos, nas suas diversas expressões, a que alguns chamavam liberais, acabariam por funcionar como uma espécie de “benchmark”, para o qual, cedo ou tarde, a maioria dos Estados tenderia a evoluir.

Esta atitude encerrava um evidente paternalismo e a convicção de que a razão estava do lado do Ocidente. E expressou-se na tolerância assumida face a certos regimes de matriz autoritária (como foi o caso da ditadura portuguesa), poupados pela “realpoliik”, como se a sua condução ao redil da ordem democrática fosse apenas uma mera questão de tempo, passado que fosse o seu “estágio” de preparação. O modo como a África e até alguma América Latina foram olhadas era também tributário dessa sobranceria, que satisfazia moralmente os seus titulares, que se assumiam como portadores íntimos da verdade política redentora.

O colapso da União Soviética, com a derrota ideológica e prática do comunismo, a pujança da economia de mercado e a afirmação desta como a ordem natural das coisas, reforçaram a tal ilusão do “fim da História”, ou, para utilizar o “slang” marxista, o termo das contradições antagónicas que bloqueavam o curso da humanidade.

Tudo parecia assim encaminhar o mundo para uma resultante democrática, com modelos mais ou menos diferenciados, num quadro de economia global que se impunha como óbvia e da qual todos acabariam por sair vencedores, tal o impulso ao crescimento que a nova ordem iria necessariamente gerar.

Para o bem e para o mal, a História tem muito mais imaginação do que os homens e, ao voltar da esquina, trouxe as suas surpresas.

A globalização não correu exatamente como o previsto. Claro que gerou imensas vantagens e crescimento, arrastando novas geografias e setores para a economia global, reduzindo a pobreza e oferecendo oportunidades.

Mas, ao contrário do que muitos supunham, essa expansão do mercado não foi acompanhada, em variadas zonas, por uma evolução benévola para fórmulas democráticas de gestão do poder político.

Pelo contrário: em alguns casos, e a China é talvez o exemplo mais flagrante pelo sucesso e pela sua visível importância no cômputo global, o que se verificou foi um modelo de economia de Estado ter colocado, se assim se pode dizer, o aproveitamento das vantagens do mercado ao serviço do poder desse mesmo Estado e do aparelho que o controlava, mantendo a máquina totalitária mais ou menos incólume e, porventura, ainda mais eficaz.

Com isto quer-se significar algo que parece hoje evidente: a prevalência do mercado está longe de poder garantir, só por si, um acréscimo automático de liberdade ao comum dos cidadãos.

Mas o grande veneno, para esse mesmo mundo do mercado, estava ainda por surgir. O que não estava nas contas do lado “de cá”, isto é, das democracias instaladas, era o facto da globalização económica ir, tão rapidamente, gerar no seu seio os “seus descontentes”, de que Stiglitz já falava há duas décadas.

Uma séria desafetação, com reflexos políticos, envolvendo largos setores, face aos resultados obtidos, acabou por transformar-se no outro lado da mesma moeda que tinha gerado o sucesso. É que de fora dele haviam ficado muitos perdedores do processo, apanhados entre a abertura dos mercados que lhes abafou antigas vantagens comparativas e as falências tecnológicas que vieram arruinar o seu modo tradicional de vida produtiva. A esses não lhes valeu a mezinha liberal de virem a usufruir das vantagens transformadoras da “destruição criativa”, que alguns incensaram.

E como às trocas e às deslocalizações de bens e serviços se somou a aceleração da circulação das pessoas e da força de trabalho, com as tensões também identitárias - culturais, religiosas e étnicas - daí resultantes, num magma ainda por cima sujeito a redes digitais sem controlo de inverdades, com mitos e temores a dominarem o espaço público, o cocktail para crises, com pulsões protecionistas e atitudes nada generosas, como se viu nas migrações e refugiados, estava criado.

O caldo de cultura que redundou no Brexit foi um pouco isso, Trump é a resultante fulanizada da expressão deste desespero, os “gillet jaunes” revelam a revolta perante um mundo em que os “proletários”, antigos motores da História, se afastam do desenho que a literatura esquerdista deles alimentou.

O grande risco que a nova (des)ordem mundial comporta é o facto de, com a ascensão de uma China autoritária, somada à multiplicação de modelos de deriva totalitária, um pouco por todo o mundo, se vá espalhando uma nova matriz de legitimidade política, assente na eficácia económica, na resposta simplista a medos e mitos, que coloque os valores da liberdade num grau de alguma relativização. E o principal problema é que esse modelo, absolvido moralmente pelo sucesso económico ou pela sua aceitação demagógica, possa vir um dia a afirmar-se, aos olhos de muitos povos. como uma alternativa equivalente ao seu homólogo democrático.

Este artigo foi originalmente publicado na revista Prémio - revista de economia, negócios e política.