O contributo das pessoas migrantes para o desenvolvimento económico e social dos países de origem e de destino é, cada vez mais, consubstanciado por estudos e evidências. Para que os migrantes, independentemente do seu estatuto migratório, possam realizar plenamente o seu potencial, ver respeitados os seus direitos e contribuir de forma ativa para as sociedades onde vivem e trabalham, são necessárias políticas públicas mais eficazes e coerentes, que promovam uma integração e inclusão social plenas, que combatam estereótipos de narrativas erróneas sobre migrações, e que tenham em devida consideração os especiais fatores de vulnerabilidade das pessoas migrantes e refugiadas, as quais, em todo o mundo, são particularmente sujeitas a práticas discriminatórias, de exclusão e de violações de direitos humanos. A COVID-19 veio afetar de forma desproporcional as pessoas migrantes, afetadas na confluência de uma crise sanitária, crise socioeconómica e crise de proteção. As políticas de migração e integração serão essenciais para uma recuperação forte, sustentada e verdadeiramente inclusiva durante e após a pandemia, em países desenvolvidos e em desenvolvimento, sendo esta uma oportunidade para reforçar a partilha de responsabilidades relativamente aos refugiados e a governação internacional das migrações, de forma a cumprir a Agenda 2030.
Os efeitos imediatos da pandemia de COVID-19, devido aos confinamentos, fecho de fronteiras e proibições de viagens, traduziram-se numa dificuldade de deslocação entre países e, portanto, numa diminuição de migrantes internacionais no mundo durante 2020. No entanto, a médio e longo prazo, os efeitos indiretos da pandemia, nomeadamente na fome e insegurança alimentar, na pobreza e nas desigualdades, virá muito provavelmente aumentar a necessidade de procura de meios de subsistência noutros lugares, originando uma subida potencial da migração impulsionada pela necessidade (PAM e OIM, 2020). Além disso, a COVID-19 não teve impacto no número de deslocamentos forçados, uma vez que os conflitos violentos, as perseguições políticas ou sociais, os desastres naturais e outros fatores ambientais não diminuíram durante a pandemia. Os conflitos e crises humanitárias continuaram ou agravaram-se, os números absolutos da pobreza extrema inverteram a tendência de diminuição dos últimos anos (estimando-se que a pandemia coloque, pelo menos, mais 150 milhões de pessoas em situação de pobreza extrema (1) e os níveis de fome e insegurança alimentar, que já vinham a subir há quatro anos, foram ainda mais agravados - fazendo reverter os ganhos de desenvolvimento das duas últimas décadas e comprometendo claramente a realização da Agenda 2030.
As restrições associadas à COVID-19 deixaram quase 3 milhões de migrantes sem mobilidade, ou seja, retidos sem conseguirem regressar aos seus locais de trabalho, às suas comunidades ou aos seus países de origem, para além de muitos se terem visto impedidos de continuarem as suas jornadas, ficando bloqueados em países de trânsito (PAM e OIM, 2020; OIM, 2020b). No caso do Corno de África, do Sahel e do Norte de África, as restrições também desviaram as rotas de migração, com um aumento do recurso a redes clandestinas, reforçando a perigosidade das travessias (PAM e OIM, 2021; MMC, 2021). Esta perigosidade pode aumentar ainda mais, dado as redes de passadores ou traficantes de seres humanos terem de procurar métodos mais arriscados para contornar as restrições. Além disso, as pessoas migrantes são um dos principais grupos de risco no que respeita ao tráfico de seres humanos, e a atuação de redes criminosas beneficiou da pandemia, para além de a assistência às vítimas ter sido dificultada, quer na sua identificação quer no apoio legal e/ou social (2).
As restrições de viagem e medidas de controlo fronteiriço podem e devem ser implementadas em total respeito pelos direitos das pessoas em movimento. No entanto, com o fecho de fronteiras, o direito a asilo e proteção internacional ficou comprometido, o que pode ter forçado pessoas a regressarem para situações de perigo e de violações dos direitos humanos, ou seja, para locais de onde pretendiam exatamente fugir (OCDE, 2020a). Da mesma forma, durante a pandemia, foram reportadas às Nações Unidas (ACNUR e OIM) recusas de entrada a requerentes de asilo e a menores não acompanhados nas zonas de fronteira, em várias regiões do globo, bem como recusa de desembarque a refugiados e migrantes resgatados no mar (3) ou expulsão imediata para países de trânsito e de origem, particularmente por países da União Europeia, em violação clara do direito internacional e do princípio de não-repulsão (4) (ver capítulo 2). Isto apesar do apelo de organizações internacionais e da sociedade civil para ser considerada uma suspensão temporária de deportações ou retornos forçados durante a pandemia (5).
Além disso, a pandemia criou constrangimentos operacionais e logísticos nos serviços de imigração, um pouco por todo o mundo. Na Europa, o pedido de asilo ou proteção internacional tornou-se mais difícil e moroso: as restrições de movimento levaram a que as solicitações de asilo na UE atingissem o nível mais baixo desde 2013, mas muitas decisões também ficaram pendentes devido à paragem de tribunais, serviços consulares e outros serviços públicos (6). Da mesma forma, as atividades de regresso e reinstalação ficaram suspensas na maioria dos países, deixando muitos migrantes e refugiados presos numa situação de limbo burocrático. Em vários países europeus, porém, foram também tomadas medidas para alargar prazos de validade de documentos, ou para regularizar pessoas em situação irregular, como foi o caso da Itália e de Portugal (OCDE, 2020d).
O impacto desproporcional da COVID-19 nas pessoas migrantes ou refugiadas, que já se encontravam previamente em situação de maior vulnerabilidade, é evidente a vários níveis, em resultado da interligação da crise de saúde, crise socioeconómica e crise de proteção (NU, 2020). Desde logo, nas pessoas deslocadas, a impossibilidade de fazer chegar assistência internacional devido às restrições de movimentação e/ou a redução do financiamento para operações humanitárias levou a cortes na ajuda alimentar para populações de refugiados, nomeadamente em vários países da África Subsaariana (PAM e OIM, 2021) e à impossibilidade de fornecer outros bens e serviços, nomeadamente o acesso à educação (NU, 2020). A crise veio exacerbar a situação vulnerável de mulheres e meninas migrantes, que enfrentam maiores riscos de exposição a violência com base no género, abuso e exploração. Os centros de acolhimento de pessoas deslocadas e os campos de detenção, oferecendo geralmente fracas condições sanitárias e estando frequentemente em sobrelotação, apresentam riscos elevados para a saúde e para o controlo da pandemia (IRC, 2020). Os movimentos de reinstalação de pessoas refugiadas também foram afetados e muitos não conseguiram aceder aos programas de regresso voluntário: apenas 34 400 refugiados foram reinstalados em países terceiros durante o ano de 2020, o que contrasta com as 107 800 pessoas reinstaladas no ano anterior, representando uma descida de 69% (ACNUR, 2021).
Nos países de destino, a pandemia teve um impacto transversal nos trabalhadores migrantes e refugiados (que são mais de 164 milhões no mundo, segundo a OIT), uma vez que, estando normalmente em trabalhos mais precários ou temporários e sazonais, e trabalhando mais no setor informal, foram particularmente atingidos quer pela impossibilidade de trabalharem, quer ainda pela dificuldade de acederem a medidas de assistência/proteção social ou a incentivos de recuperação económica. Em contexto de crise, os migrantes estão entre os primeiros a perderem o emprego (7) e podem também enfrentar barreiras significativas à reentrada no mercado de trabalho dos países de acolhimento, devido a restrições à mobilidade, falta de reconhecimento das qualificações ou dificuldades em preencherem critérios administrativos (por estarem em situação irregular ou indocumentados, por exemplo) (OIM, 2020a). Na Europa, a perda de rendimentos e a falta de perspetivas futuras para os migrantes aumentou a dificuldade de assegurar meios de subsistência e levou, em muitos casos, à intenção de regressarem aos países de origem. Além disso, a vulnerabilidade dos migrantes traduz-se também numa maior dificuldade de acesso a serviços de saúde e sociais básicos, devido a barreiras legais, linguísticas ou culturais, a qual se agravou, incluindo no acesso a diagnóstico, tratamento e vacinação contra a COVID-19 (8). A inclusão de migrantes e refugiados nos planos de vacinação será essencial para controlar a pandemia.
Por outro lado, contudo, a pandemia veio demonstrar, de forma imediata e aguda, o carácter essencial das populações migrantes nas economias dos países onde vivem e trabalham: na Europa e nos Estados Unidos, os imigrantes constituem uma boa proporção das pessoas que desempenham funções fundamentais para o funcionamento das sociedades, incluindo no setor da saúde. Nos países europeus, 23% dos médicos e 14% dos enfermeiros nasceram num país diferente de onde trabalham, mas a proporção de migrantes é ainda maior noutros serviços essenciais (em especial funções com baixas qualificações) e particularmente nas cidades (OCDE, 2020c). Na maioria dos países da UE, a taxa de emprego dos cidadãos de países terceiros é bastante superior à dos cidadãos da UE em áreas como limpeza, serviços de assistência pessoal (como cuidadores), construção e obras públicas, transportes, abastecimento e preparação de alimentos, agricultura e pesca.
No entanto, a experiência de outras crises económicas tem demonstrado que este reconhecimento não se traduz, necessariamente, em políticas migratórias mais favoráveis ou de integração mais ativas, uma vez que os países têm tendência a voltarem-se para as necessidades mais imediatas e internas, os desafios de manutenção da coesão social aumentam, e as medidas de apoio tendem a não chegar da mesma forma às populações migrantes (OCDE, 2020d). Em alguns casos, a pandemia pode mesmo estar a ser utilizada como pretexto para implementar medidas mais restritivas à liberdade de circulação e políticas anti-imigração sob a capa de preocupações de saúde pública (9), ou para reforçar discursos xenófobos e de estigmatização dos migrantes e refugiados. Estes sentimentos de desconfiança, exacerbados por desinformação e pela politização, têm originado episódios de discriminação e violência contra imigrantes de determinados países (como se verificou no caso das comunidades migrantes de países asiáticos, nos Estados Unidos e em alguns países europeus), bem como em países em desenvolvimento, no caso de regresso de migrantes que são encarados com portadores ou propagadores do vírus.
Com políticas mais inclusivas e coerentes, a incerteza que caracteriza o atual contexto global pode, pelo contrário, ser uma oportunidade para reforçar valores de empatia e solidariedade, aproveitando a consciencialização reforçada sobre a interdependência global para reformular as abordagens à mobilidade humana, em benefício de todos e cumprindo o compromisso central da Agenda 2030 de “não deixar ninguém para trás” (NU, 2020).
Durante a pandemia, as diásporas têm sido particularmente ativas na resposta e desenvolvimento de novas iniciativas para enfrentar os desafios sanitários, sociais e económicos enfrentados pelas suas comunidades nos seus países de origem e de acolhimento, incluindo, por exemplo, apoio às vítimas da pandemia, reforço das redes de proteção social, entre outras (OIM, 2020c). Outro aspeto interessante no contributo das migrações para o desenvolvimento é o desempenho das remessas dos emigrantes em contexto de pandemia. Apesar de se saber que as remessas tendem a ser mais estáveis do que outros fluxos de financiamento do desenvolvimento, podendo até ser contra cíclicas (na medida em que os emigrantes podem ter tendência a cortar no consumo e aumentar a poupança durante recessões económicas, enviando mais recursos para as suas famílias nos países de origem), o facto de a recessão ser global, afetando países de origem e de destino, e de o rendimento dos trabalhadores ter sido muito afetado pelas medidas restritivas nas economias mais avançadas faziam prever um impacto fortemente negativo nas remessas. As previsões da OCDE de descida acentuada dos fluxos de financiamento do desenvolvimento nos países mais pobres confirmaram-se, o que é preocupante, mas não no caso das remessas, uma vez que este fluxo decresceu apenas 1,6% entre 2019 e 2020, tendo mesmo aumentado em algumas regiões do mundo (Banco Mundial e Knomad, 2020). É necessário ter em atenção, porém, que a recessão global, a recorrência de surtos de COVID-19, o facto de muitos países de acolhimento poderem não ser capazes de fornecer o mesmo nível de estímulo fiscal de 2020 e o previsível impacto após a cessação de medidas temporárias de apoio (ao emprego, por exemplo) pode vir a ter efeitos negativos nas remessas dos emigrantes a médio-prazo.
As pessoas migrantes e as políticas de migração e integração serão essenciais para uma recuperação forte, sustentada e verdadeiramente inclusiva das economias e sociedades, seja em países desenvolvidos ou em desenvolvimento, a nível local, nacional, regional e internacional (OCDE, 2020b). Nesse contexto, é importante que o papel, necessidades, direitos e vulnerabilidade das pessoas migrantes, deslocadas e refugiadas - independentemente do seu estatuto migratório - sejam integrados quer nos planos e políticas nacionais de prevenção e resposta à COVID-19, com respostas inclusivas em termos de saúde pública e acesso a serviços básicos (10), quer nos planos de recuperação económica e nas medidas de estímulo à atividade económica, nas políticas de apoio à coesão social, nas respostas ao desemprego e à promoção de igualdade de oportunidades, acesso e tratamento no mercado de trabalho, bem como na proteção de direitos humanos (sociais, económicos, políticos). Outras questões relevantes para a revitalização pós-pandemia e ligadas à remoção de barreiras devem ser equacionadas, como o reconhecimento e acreditação de qualificações académicas e profissionais; a portabilidade de direitos sociais e a inclusão de pessoas migrantes e refugiadas nos sistemas de proteção social; a exploração de vários modelos de regularização de migrantes, de vias legais de migração e de reinvenção de uma mobilidade mais flexível e acessível; a diminuição dos custos de envio de remessas, entre outras.
Além disso, esta é uma oportunidade para reforçar a cooperação internacional, a partilha de responsabilidades relativamente aos refugiados e a governação internacional das migrações, de forma a assegurar o cumprimento dos instrumentos internacionais de Direitos Humanos e de forma a aproveitar plenamente os benefícios de “facilitar a migração e a mobilidade das pessoas de forma ordenada, segura, regular e responsável” (meta 10.7 dos ODS).
Tudo isto beneficiará não apenas os migrantes e suas comunidades, mas as economias e sociedades como um todo, dadas as múltiplas interligações entre a mobilidade humana e um desenvolvimento mais inclusivo e sustentável.
Este artigo consta da publicação Desenvolvimento e Migrações: contradições e tendências de Julho de 2021.
Leia as publicações Desenvolvimento e...
Segurança: https://bit.ly/3vc54Wg
Alterações Climáticas: https://bit.ly/3aEuIcU
Segurança Alimentar e Nutricional: https://bit.ly/3veOllm
Comércio e Finanças: https://bit.ly/3BKpJ66
Migrações: https://bit.ly/3j09I4E
Os 5 estudos #CoerênciaNaPresidência, elaborados entre novembro de 2020 e julho de 2021, estão disponíveis em https://www.fecongd.org/coerencia/estudos/
1. As previsões das Nações Unidas apontam para mais 150 a 175 milhões de pessoas, sendo que o número de pessoas em pobreza extrema (menos de 1,90USD/dia) vinha a diminuir desde 1999.
2. A este propósito, consultar “Covid-19 is worsening human trafficking – states should take action, warn Council of Europe experts”, Conselho da Europa, 09.04.2021.
3. Ver, por exemplo, “UN, rights groups accuse Greece of using pandemic to ‘step up’ migration restrictions”, 23.08.2020.
4. O princípio da não repulsão (Non-Refoulement) proíbe a “devolução” de um refugiado a um país onde possa estar sujeito a perseguição ou tortura. Foi consagrado na Convenção de Genebra de 1951 e veio a ser reiterado e reforçado com outros instrumentos jurídicos, como a Convenção Internacional de 1966 sobre os direitos civis e políticos e a Convenção de 1984 sobre a tortura e penas e tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. De acordo com o artigo 33.º da Convenção de 1951, “nenhum dos Estados contratantes expulsará ou repelirá um refugiado, seja de que maneira for, para as fronteiras dos territórios onde a sua vida ou a sua liberdade sejam ameaçadas em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou opiniões políticas”.
5. Ver, por exemplo, “Forced returns of migrants must be suspended in times of COVID-19”, declaração da United Nations Network on Migration, maio de 2020.
6. Mais informação em https://easo.europa.eu/latest-asylum-trends.
7. Em todos os países da OCDE, a taxa de desemprego das pessoas imigrantes subiu mais do que a dos nacionais (OCDE, 2020c).
8. A Agência da UE para os Direitos Fundamentais tem alertado em vários relatórios para estas desigualdades em contexto de pandemia.
9. A este propósito, consultar por exemplo “The COVID-19 excuse? How migration policies are hardening around the globe”, The New Humanitarian, 17.04.2020.
10. Tal como estabelecido no Quadro das Nações Unidas para responder ao impacto socioeconómico da COVID-19, de maio de 2020, disponível em: https://bit.ly/3kevZ0h.