aço parte de um grupo, constituído por pessoas de diversas proveniências, profissões e ideologias que promove a reflexão e debate sobre a agenda internacional e desafios globais. Esse grupo, cujas realizações estão disponíveis online, chama-se Clube de Lisboa e vai organizar esta semana a sua 5.ª Conferência de Lisboa, gratuita e aberta ao público, sobre o tema Rumo a uma Nova Ordem Mundial?.
Começo com este parágrafo, aparentemente (ou talvez não) "publicitário", para abordar e refletir sobre o tema do artigo. Na verdade, surpresa minha, nas redes sociais do Clube, desenrolou-se na última semana uma polémica sobre o título da Conferência, sem qualquer discussão sobre os temas dos painéis do programa.
Alguém me chamou a atenção de que tal seria esperável, dada a profusão de páginas na net que se dedicam à denúncia de uma alegada conspiração global, de ricos e poderosos - e cito três exemplos retirados de várias dezenas que encontrei (mantenho a grafia): "esta página dedica-se a trazer à tona as pretensões da elite global para a construçao de uma nova ordem economica global que figurará no advento de um grande lider mundial que controlará todas as nações c seu poder totalitário."; "divulgamos ativamente sobre a Nova Ordem Mundial, que automáticamente envolve o Governo Oculto, os Illuminatis, o Grupo Bilderberg, as Profecias, os Chemtrails, os OGM/GMO (Alimentos Orgânicos Genéticamente Modificados) e muito mais..."; somos "um grupo de conhecimentos gerais com base em teorias conspiratórias, sociedades secretas, nova ordem mundial, etc..".
Confesso que fiquei surpreendido, mas mais esclarecido sobre a razão das polémicas sobre o título. Vejamos, porém, algumas das razões que sustentam a necessidade de estarmos atentos e informados sobre as mudanças profundas que têm vindo a ter lugar na dita cuja... ordem mundial, procurando não cair na armadilha de considerar que as realidades são fake news (ao estilo Trump) e que tudo não passa de conspirações urdidas por uma guilda de deuses todo-poderosos.
À entrada da presente década, eventos impactantes, políticos, securitários, económicos, sociais, tecnológicos, ambientais, estão a acelerar mudanças globais, locais e individuais. A covid-19 e a Guerra da Ucrânia são dois desses eventos que, juntamente com outros que estão em curso há já bem mais tempo, designadamente desde o fim da Guerra Fria, estão a reverter significativos sucessos conseguidos nas últimas duas décadas, tais como a saída de milhões de pessoas da pobreza extrema ou os acordos para combater o aquecimento global.
O que (problematicamente) chamamos ordem mundial do pós-2.ª Guerra Mundial baseou-se na criação de um conjunto de normas internacionalmente aceites, não obstante a coabitação conflitual de dois sistemas económicos e políticos diferentes, liderados pelos EUA e pela URSS. Apesar de serem confrontacionais, a coexistência destas "duas ordens dentro duma Ordem" permitiu a criação e manutenção de algumas (não todas) instituições multilaterais. Neste período, que durou cerca de 35 anos, ocorreram os processos de integração europeia, a descolonização e, em alguns países asiáticos, modelos de crescimento bem-sucedidos, assentes na produção industrial doméstica com padrões internacionais competitivos.
Após o fim da "Guerra Fria" e da União Soviética, iniciou-se um novo ciclo, caracterizado pela supremacia dos EUA, que se estendeu por cerca de década e meia. A globalização (e a deslocalização industrial) acelerou - e as políticas neoliberais prevaleceram, fragilizando estados e instituições públicas e acelerando a concentração de riqueza e rendimento. Foi igualmente neste período que a Revolução Digital se intensificou e que a China se tornou na segunda maior economia mundial - sendo vista pelos EUA como principal competidor mundial pelo poder.
Tal acontece a par de uma situação de emergência climática, do aumento de desigualdades de riqueza e rendimento, locais e globais, do (re)surgimento de potências regionais cada vez mais assertivas, bem como com o retorno de nacionalismos e fundamentalismos identitários que originaram guerras. A estas transformações junta-se, novamente, a inflação, com causas económicas que regridem até à crise financeira global de 2008, mas que, após a Guerra da Ucrânia, assumiu contornos bastante políticos - que a economia não pode solucionar. O crescimento da inflação - e da dívida tornaram-se hoje, e mais uma vez, ameaças globais.
É neste contexto que, após um fugaz (?) período unipolar, a competição pela hegemonia aumenta, o multilateralismo enfraquece, tensões e iniciativas multipolares se multiplicam e um novo, ainda difuso, quadro global começa a tomar forma. A questão que devemos colocar a nós próprios é se achamos que tudo isto é fruto de uma conspiração de uma qualquer entidade omnisciente e omnipotente ou se não será mais curial procurarmos compreender o que se passa e assumirmos o nosso papel como cidadãos informados.
Artigo originalmente publicado no Diário de Notícias, 13.10.2022.
Imagem: Conferências de Lisboa 2022