A rutura entre a URSS e a China, no pós-estalinismo, a “revolução cultural” e o culto de Mao, a que algum mundo ocidental em tempo de turbulência geracional foi sensível, somado à mudança geopolítica criada pelo reconhecimento da China de Beijing pela ONU – tudo isso suscitou, deste nosso lado do mundo, nos anos 50 a 70 do século passado, um surto de curiosidade sobre a República Popular da China.
Foram muitos os livros dos “sinólogos”, mais ou menos elaborados, que se esforçaram por nos “traduzir” esse mundo estranho, misterioso e imenso, marcado por formas de comportamento, e até de medida do tempo histórico, muito diversas das nossas.
Para além da propaganda do maoísmo, do lado de cá interpretada como uma novidade revolucionária colorida e algo “naïf”, cheia de aforismos doutrinários, que uns achavam uma filosofia profunda e outros meras platitudes de banalidade, houve quem tentasse aprofundar a realidade chinesa. K.S. Karol e Alain Peyerefitte foram, entre escassos outros, quem mais longe avançou nessa descriptagem da contemporaneidade do “império do meio”.
Ao retomar, num livro que ficou famoso, a frase atribuída a Napoleão – “quando a China acordar, o mundo tremerá” –, Peyrefitte terá sido talvez o mais pragmático “leitor” ocidental dessa nova China. Mas a sua lucidez não escapava, apesar de tudo, a uma caricatura, quase etno-antropológica, de um poder que, não tendo um tropismo externo agressivo, embora assustasse o seu “near abroad”, revelava uma postura internacional atípica, nomeadamente na seleção dos seus interlocutores ocidentais.
Entretido na Guerra Fria com a URSS, fica a ideia de que o ocidente olhou como algo inócuas algumas iniciativas da política externa chinesa, nomeadamente em África, cuja lógica não era muito evidente e parecia relevar de um casuísmo de competição com Moscovo.
Pode imaginar-se que, para os think-tanks mais atentos, que alimentam de ideias os poderes ocidentais com expressão global, não tivesse passado despercebido o salto económico-financeiro que, em escassas dezenas de anos, a China tinha dado. Mas fica a sensação de que, por muito tempo, ela ia sendo vista por muitos apenas como um grande poder “benévolo”.
Com o colapso da URSS, os EUA terão sido os primeiros a perceber que estava ali o novo inimigo potencial, com Moscovo reduzido a adversário de segunda linha. Para a Europa, por muito tempo vidrada nos cifrões, a China era essencialmente um grande parceiro económico, face ao qual se via obrigada a deixar umas piedosas notas em matéria de Direitos Humanos, para salvar a sua face ética.
Um poder global não pode ser apenas económico, como a União Europeia bem o prova, pela negativa. Agora, a China arma-se como potência naval, vital para um poder que vive do comércio e importa o essencial da sua energia e outras matérias-primas, desenha a sua nova “rota da seda“ geopolítica e afirma-se em todos os fóruns relevantes.
O mundo demorou muito a acordar face à China, como se constatou no comunicado final da recente cimeira da NATO.
Artigo publicado originalmente no Jornal Económico, 13.12.2019.
Francisco Seixas da Costa é embaixador e presidente do Clube de Lisboa.
Foto: 1ª Conferência sobre Fragilidade dos Estados, Lisboa, junho de 2019.