Covid-19. É necessária "informação clara" para evitar manipulações

O académico britânico Adrian Currie sublinhou a "extrema importância" de os governos fornecerem uma informação clara sobre a atual pandemia e mais meios que evitem a manipulação ou a má informação.

"Temos de entender a informação que temos, manter uma atitude crítica face aos 'media' que temos, a literacia mediática e essas aptidões são muito importantes, e uma questão crítica", assinalou Adrian Currie, docente de filosofia no Departamento de Sociologia, Filosofia e Antropologia da Universidade de Exeter.

O académico britânico exprimia-se na 4.ª Conferência de Lisboa, um evento 'online' promovido pelo Clube de Lisboa e subordinado ao tema "A Aceleração das Mudanças Globais - e os impactos da pandemia".

"Com a atual situação pandémica, é extremamente importante que os governos forneçam uma informação clara. Gostava que existissem mais meios que evitassem que as pessoas fossem manipuladas ou mal informadas", precisou.

No painel intitulado 'O Medo como Arma Política', Adrian Currie participou num debate com o escritor moçambicano Mia Couto e moderado por Raquel Vaz Pinto, investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI), docente universitária e membro da direção do Clube de Lisboa.

Os sistemas políticos atualmente no poder em países como os Estados Unidos ou Brasil, e o discurso emitido pelos seus dirigentes com o objetivo de "expandir e fomentar o medo" estiveram no centro das intervenções.

"Uma das coisas positivas e negativas que existem é que a informação na internet está desregulada por natureza, e vozes que não tinham outra hipótese de se fazerem escutar possuem uma plataforma que nas circunstâncias corretas pode ser escutada", assinalou, para também sublinhar a importância das escolas públicas no acesso à informação e saber utilizá-la sem deixar de desmitificar a ideia de que é "suficiente ter acesso a toda a informação disponível".

Na parte final do debate regressou ao tema, ao referir que uma das maiores fontes do medo é a falta de conhecimento. "No contexto do Reino Unido, muitas pessoas não compreendem de facto que existem outras a viver em contextos muito diferentes de si próprias", revelou.

O escritor Mia Couto optou durante o debate a três descortinar o motivo pelo qual "o estado de vulnerabilidade precisa de um culpado".

"Um mundo como ele é, com as suas instituições democráticas, conquistas sociais, tudo isso nos fez promessas e deu esperanças que não foram de todo cumpridas", sublinhou.

E prosseguiu: "Querem que sejamos desenganados, e um desenganado não procura explicações, causas, procura culpados, quer vingança. Os vingadores podem ser contratados num beco escuro (...) e há vingadores hoje que são eleitos e estão autorizados, porque não são apenas presidentes, são heróis que dispensam tribunais".

O medo como ferramenta política foi a questão central colocada pela moderadora, e que transportou Adrian Currie para a atual situação no Brasil e Estados Unidos e a natureza dos sistemas políticos.

"Com a pandemia de covid-19 tornou-se mais óbvio que os sistemas de saúde não são independentes dos sistemas sociais e as pessoas estão atentas à forma como podem atuar em boas condições, mas também em más condições", defendeu.

O académico britânico pugnou por "sistemas democráticos resilientes a qualquer tipo de autoritarismo" apesar de reconhecer que estes sistemas podem tornar a política "aborrecida".

Explicitou: "Somos encorajados a gostar de histórias simples. Por vezes não existem simples respostas, e um bom sistema político pode ser verdadeiramente aborrecido". E numa referência ao Presidente dos EUA, considerou que "Trump fala de uma forma aborrecida, mas por um motivo particular, não quer que escutem o que está a dizer".

A necessidade de o sistema "escutar com maior abrangência" as diversas camadas sociais num mundo de grandes desigualdades poderá ser o antídoto para evitar que surjam líderes "fortes, duros", e fomentar a necessária "resiliência" quando se perspetivam choques em diversas sociedades em tempos de crise generalizada.

Uma perspetiva também assinalada por Mia Couto, ao sustentar a importância no ensino, que ajude a produzir consciência, em contraposição ao medo.

"A educação na escola, que ensina que os vírus estão dentro de nós, que ensina que o vírus não tem apenas a ver com educação e saúde, com a doença, mas que somos feitos dessa diversidade e complexidade. Uma criança que aprenda que é feita a partir de bactérias, de vírus, por material não humano, essa criança está muito mais habilitada para amanhã não ser manipulada pelo medo, pelo discurso racista ou fascista, ou totalitário, que procura a pureza humana que não existe", salientou.

Num mundo em crescente informatização, Adrian Currie também contestou a "ingenuidade" de quem pensa que a tecnologia é neutral.

"Devíamos pensar muito seriamente sobre quem está a desenvolver as novas tecnologias, como estão a ser usadas. São necessárias diversas vozes diferentes envolvidas nas novas tecnologias que estão a ser construídas. Uma boa forma de criar más tecnologias é ter um grupo único e monótono de pessoas a fazê-lo", alertou.

Uma evidência que para Mia Couto ainda contrasta com a sociedade moçambicana, e onde a noção de "fim do mundo" ainda não assentou em definitivo.

"Em Moçambique há uma filosofia, uma religiosidade, uma cosmogonia que afasta essa ideia de um tempo cronológico, é um tempo circular, não há fim, não há princípio, esse Deus monoteísta está desempregado, foi dispensado", disse.

Uma noção que, como frisou, não tem correspondência nas elites do poder.

"É triste que essa visão do mundo que os moçambicanos têm não se reflete naquilo que é o programa, as filosofias de governação, que vai apenas buscar inspiração monótona, singular, que herdou do seu lado europeu. Temos uma visão do que vai ser o mundo fundada naquilo que é a voz que sobrou da dominação europeia. Trata-se da necessidade de abrir espaço para diferentes vozes, mesmo na política", vincou.

 

Artigo publicado no Notícias ao Minuto a 01.10.2020

O painel "O medo como arma política" realizou-se no dia 1 de Outubro de 2020, no âmbito da 4ª Conferência de Lisboa. Pode (re)ver o debate aqui.