Quais as ligações entre futebol e política internacional?

No contexto atual, a política tende a ser vista como uma competição entre equipas. Os políticos contemporâneos adotaram comportamentos do fenómeno desportivo que estão a transformar a relação com os próprios eleitores, afirmou Simon Kuper na Lisbon Talk sobre "Futebol e Política no Contexto Global"

O escritor e jornalista Simon Kuper foi um dos oradores da Lisbon Talk, na qual salientou a relação muito próxima entre as dimensões do futebol e da política, considerando que não se resume apenas a um aproveitamento político de regimes autoritários, mas também de democracias. No entanto, desvalorizou o impacto das vantagens obtidas pelos políticos com a associação a feitos desportivos. "Com Emmanuel Macron, a associação ao futebol não ajudou, porque as pessoas suspeitaram de uma tentativa de aproveitamento pessoal. A verdade é que quatro meses depois da vitória da seleção francesa no Mundial 2018 nasceu o movimento de protesto dos 'coletes amarelos'".

Simon Kuper sublinhou que o "futebol é um meio de mensagem muito poderoso" e "um bom método para perceber a sociedade". Nesse sentido, apontou o caso do ex-primeiro-ministro de Itália e ex-presidente do AC Milan, Sílvio Berlusconi, que partiu do futebol para se afirmar no contexto político do seu país: "Berlusconi passou do futebol para a política com uma metáfora sobre o futebol: 'Decidi ir para o campo'. Então, prometeu transformar Itália como revolucionou o AC Milan, desde que pegou no clube em meados dos anos 80", explicou, relembrando ainda como nos Estados Unidos se viram fenómenos similares: "George W. Bush foi administrador da equipa de basebol dos Texas Rangers antes de ser governador" e, posteriormente, presidente norte-americano.

O atual presidente norte-americano, Donald Trump, não foi esquecido na análise, com o colunista do jornal Financial Times a citar a sua ligação ao mundo do 'wrestling' como uma forma de afirmação junto da classe trabalhadora americana, onde esta modalidade ainda tem grande implantação popular. "Várias coisas na política moderna são inspiradas no desporto. Se olharmos para um comício de Donald Trump, as pessoas usam bonés com o slogan ‘Make America Great Again' e parecem-se com adeptos a utilizarem o ‘merchandising' de uma equipa. Quando alguém diz ‘Trump está a mentir' ou ‘Trump foi corrupto na questão da Ucrânia', eles respondem, basicamente, que são adeptos de Trump e que não serão persuadidos pelas críticas. Vão dizer ‘somos fãs' e, tal como os adeptos, vão continuar fiéis, mesmo nos tempos mais difíceis", 

Sublinhando que o presidente norte-americano estabeleceu uma relação essencialmente "emocional" com o eleitorado, Simon Kuper entende que essa situação reduziu a importância das questões políticas para as pessoas. "A política é vista como uma competição entre equipas e as eleições são noticiadas como um grande jogo e simplificadas. Retiram-se do contexto temas políticos complexos, como o que fazer com o serviço de saúde, e torna-se em algo como 'a minha equipa contra a tua equipa' e 'eu ficarei ao lado da minha equipa, aconteça o que acontecer'".

Por outro lado, identificou a Argentina como "'ground zero'" do aproveitamento do futebol pela política. Partindo da teoria que diz que a ditadura militar de Jorge Videla viciou a seu favor o Mundial de futebol de 1978, passando pela ascensão de Maurício Macri à presidência do país em 2015, após liderar o Boca Juniors entre 1995 e 2007, Simon Kuper admitiu que "o futebol ajudou o Papa Francisco, enquanto fã, a posicionar-se na opinião pública 'como um de nós'".

Uma realidade que veio acentuar a polarização política foi o alargamento das redes sociais e o seu aproveitamento nas campanhas eleitorais. Embora a mesma polarização se possa assistir no futebol, Simon Kuper desvaloriza esse peso pela efemeridade do próprio desporto. "As redes sociais são poderosas, mas penso que não fazem assim tanta diferença no futebol, na sua perceção e nas suas possibilidades em termos políticos. O aspeto relevante do sucesso do futebol é ser efémero. Quando a nossa equipa ganha a Taça ou o nosso país ganha o Europeu, é uma experiência coletiva incrível, mas o impacto na vida das pessoas é muito breve. É muito complicado tornar o futebol num facto político duradouro".

Raquel Vaz-Pinto centrou a sua análise na ação da China em relação ao futebol e de como esta ligação assenta numa doutrina de 'soft power' de Pequim a nível internacional. "Para a elite chinesa e para o Partido Comunista chinês, o futebol é um tema muito importante", observou, indicando o investimento de grandes empresas próximas do regime em clubes europeus como uma manifestação desse 'soft power'. Entre os clubes com laços a Pequim identificou Atlético de Madrid, Wolverhampton, Manchester City e Slavia Praga.

Na Lisbon Talk, foi inevitavelmente abordado o impacto do Football Leaks, com Simon Kuper a defender que este é um caso com impacto essencialmente em Portugal, onde Rui Pinto está detido em prisão preventiva desde março de 2019, depois de ter sido descoberto na Hungria pelas autoridades policiais, ao abrigo de um mandado de detenção internacional.  "Muitas das revelações são acerca de Portugal e é aqui que tem o maior impacto. No exterior houve algum impacto junto do Manchester City e do PSG, que parecem ter ‘contornado' as regras do fair-play financeiro. Mas esses clubes têm advogados poderosos, muito dinheiro e grandes futebolistas, pelo que é muito complicado para a UEFA enfrentá-los. Estão, de certa forma, protegidos pelo seu poder, pelo seu sucesso e pelo seu dinheiro".

No debate, foi ainda referido o caso Luanda Leaks, na sequência de uma posterior investigação do Consórcio Internacional de Jornalistas, que colocou em causa vários negócios da empresária angolana Isabel dos Santos. "Penso que, potencialmente, ela poderá ser derrubada, embora o dinheiro corrupto vá muito além dela. É um escândalo que ela e a sua família tenham roubado tanto dinheiro de um país tão pobre. Espero que este caso tenha consequências e, para ser franco, estou muito mais preocupado com os danos que alguém como Isabel dos Santos causou em Angola do que estou com o FC Porto ou o Benfica", afirmou Simon Kuper.

Questionado sobre alguns investimentos milionários no futebol, de origens pouco claras, o autor holandês lembra que esse é um problema que transcende o futebol e afeta a própria sociedade em geral. "Se formos pensar no papel de oligarcas e regimes autoritários na sociedade ocidental - e devemos preocupar-nos com isso -, é um problema muito maior do que o futebol. O futebol é apenas a parte mais visível. No entanto, estamos em Lisboa, uma cidade em que dinheiro corrupto de Angola abriu muitos caminhos. Muitos negócios em Lisboa, tal como em Londres, beneficiaram da ajuda a estes oligarcas e a estas pessoas corruptas que trouxeram o seu dinheiro para Lisboa, Londres, Paris, ajudando-os a limpar a sua imagem".

 

A Lisbon Talk contou com os oradores Simon Kuper, jornalista do Financial Times e autor do livro Football Against The Enemy, e Raquel Vaz Pinto, investigadora do IPRI-NOVA, membro da direção do Clube de Lisboa e autora de Para lá do Relvado, sendo moderada por Vasco Mendonça, consultor de marketing e comentador de futebol

Lisbon Talk organizada pelo Clube de Lisboa, a Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa - CCIP e a consultora O Mundo e Nós, com apoio da Câmara Municipal de Lisboa e do Instituto Marquês de Valle Flor.

 

Fotos: Gustavo Lopes Pereira - Âmago media.

Notícia elaborada com base na entrevista da Lusa e artigos SapoBancada, ptJornal, Notícias ao Minuto.