Cabo Delgado: jihadismo, "nova guerra" ou revolta popular?

Existe hoje uma profusão de (des)informação sobre a guerra em Cabo Delgado. A única explicação que tem sido consensual é de a guerra não ser provocada por tensões entre a Frelimo e a Renamo, que se distanciaram desde o início e até hoje deste conflito.

 

Existe hoje uma profusão de (des)informação sobre a guerra em Cabo Delgado, que confere maior ou menor prioridade a fatores explicativos da mesma, nomeadamente conflitos associados à descoberta de gás (maldição dos recursos), falhas de governação associadas a "novas guerras" autofinanciadas com recursos "transportáveis" ou revolta popular originada por ressentimentos contra o Estado e "senhores" locais, por ocupação de terras, ausência de investimentos em infraestruturas e serviços públicos e falta de empregos. Na verdade, a única explicação que tem sido consensual é de a guerra não ser provocada por tensões entre a Frelimo e a Renamo (fação oficial ou dissidente), que se distanciaram desde o início e até hoje deste conflito.

Os fatores mencionados justificam guerras civis, mas não explicam o tipo de conflito que ocorre em Cabo Delgado. Ele não cabe, igualmente, na qualificação de contradições violentas entre nómadas e agricultores ou de guerras de natureza interétnica apesar de, ao longo do tempo, terem existido relações conturbadas entre os diversos grupos sociais que compõem a população da província: os muânis, situados no nordeste da província, muçulmanos de língua suaíli que, apesar de minoritários, têm contiguidades sociais e comerciais além-fronteiras e na costa do Oceano Índico; os macondes, originariamente provenientes do planalto central, maioritariamente católicos, de onde provém a maioria das elites (leia-se detentores de recursos) locais e que veem conterrâneos seus em posições de destaque na governação e forças de defesa e segurança (a começar pelo próprio Presidente da República); os macuas, o maior grupo nacional do país, que, nesta província, são maioritariamente muçulmanos e que, historicamente, têm quase sempre assumido posições subalternas nos "elevadores" sociais e políticos - no tempo colonial e no pós-independência.

No seu início, a guerra começou por ser financiada com donativos de comerciantes locais e com a venda, na Tanzânia, de madeira, carvão e lenha. Não é evidente que tenha beneficiado de dinheiros provenientes do negócio, já pré-existente, de marfim e madeiras preciosas (protagonizado por outros atores locais e por mafias chinesas e vietnamitas) ou de receitas da passagem, por portos situados no nordeste da província, de droga destinada à África do Sul - aliás, donos e beneficiários deste tipo de negócio evitam a exposição pública que os conflitos violentos suscitam.

Na verdade, a guerra a que hoje assistimos foi provocada pela ação de jihadistas armados, que fazem uma leitura literal e a-histórica do Corão e das Hadiths, impondo regras de comportamento social a muçulmanos e "infiéis", obrigados a preceitos públicos uniformes. No caso dos não-muçulmanos, é igualmente cobrado um tributo e, em casos de acusação de apostasia ou oposição ao novo poder, aplicada a pena de morte ou a escravização, justificadas pela ideologia jihadista, no caso pelos "Defensores da Tradição" - tradução portuguesa de Ansar al-Sunna, como hoje se intitula o grupo em Cabo Delgado.

Posto isto, impõe-se a seguinte pergunta: a natureza da guerra e os seus atores estão a mudar e, se sim, como? A resposta a esta questão permitirá melhor analisar o conflito e as formas de o enfrentar.

A sublevação violenta foi precedida de vários episódios, que ocorreram fora dos holofotes da imprensa e que envolveram o encerramento de mesquitas que pregavam a versão radical e salafita do Islão por intermédio de jovens adultos que, após terem sido radicalizados em madraças (escolas) no Médio oriente e outros países da África oriental, fixaram residência em Cabo Delgado, por vontade própria ou por determinaçãodo Conselho Islâmico de Moçambique. Designado pela população de Shabaab - juventude em árabe, o grupo reclamou-se dos ensinamentos de Aboud Rogo Muhammad, clérigo salafita queniano morto em 2012, tendo parte dos seus seguidores fugido para o sul da Tanzânia, de onde estabeleceram ligação com os seus congéneresmoçambicanos. As primeiras ações terroristas em 2017contaram já com a participação de estrangeiros provenientes daquele país. O início da guerra não esteve, pois, ligado aogás e às companhias que preparam a sua exploração, o que não significa que ela não tenha ganho visibilidade e intensidade por este facto, atraindo outros interesses, não só de grupos de mercenários, mas também de países da região e daqueles que têm companhias de bandeira envolvidas no negócio do gás.

A partir de 2019, com a criação pelo ISIS da província do Centro e Leste de África e a aceitação do Ansar-al-Sunna como grupo afiliado, a guerra ganhou em internacionalização,atores envolvidos e fontes de financiamento, que se tornaram mais vastas e intricadas. Esta fase tem sido objeto de relatos circunstanciados, que mostram a intensificação de operações militares, a utilização de material mais sofisticado e a participação de combatentes experimentados do Uganda, Quénia, Somália e outros países do lado dos jihadistas e de grupos de mercenários e "conselheiros militares" do lado do governo. Uma das maiores interrogações sobre o futuro a curto prazo da guerra tem a ver com a possível deslocação para Moçambique de um número maior de combatentes ugandeses afiliados ao ISIS, que estão a ser combatidos com algum sucesso pelo exército congolês no nordeste da República Democrática do Congo.

Recentemente, o Ansar al-Sunna tem misturado táticas terroristas (destruição de infraestruturas, decapitações e outros tipos de violência sobre a população, provocando fluxos de refugiados que colocam sérios problemas humanitários e de segurança, ao governo) com táticas de insurgência (cativação do apoio popular com atitudes conciliatórias e aproveitamento de ressentimentos por ações e omissões de autoridades administrativas e das forças de defesa e segurança). Por seu turno, o governo Moçambicano, que primeiramente desconsiderou o conflito classificando-o como atos de terrorismo protagonizados por agentes desconhecidos, reconheceu a existência de uma guerra localizada e passou a adotar uma ação mais consentânea com o exercício da soberania estatal. Inicialmente solicitou o apoio de mercenários russos, hoje utiliza mercenários sul-africanos e procura convencer parceiros regionais (Zimbabwe, Tanzânia e África do Sul) a concederem apoio logístico e militar, ainda sem resultados visíveis no terreno e, mais recentemente, solicitou e começou a receber apoios de outros países - incluindo dos EUA, que já declararam que a guerra em Cabo Delgado era uma ameaça jihadista internacional.

Nestas circunstâncias e nesta fase a guerra já não se resolve com a criação de melhores condições económicas e sociais que, mesmo se possíveis, levariam tempo a concretizar. Daqui não se infira que estes fatores são secundários, pelo contrário, eles são essenciais, mas pertencem ao domínio da luta política para transformação do poder e das práticas de governação.

Essa não é a luta que se desenrola em Cabo Delgado, os jihadistas não pretendem mudar políticas, eles visam mudar o conceito de vida em sociedade e converter à força a população à sua ideologia. São eles próprios que o dizem, a Jihad não é pelas riquezas terrenas, mas pela conquista das almas - que, na versão salafita, implica mudar e punir nesta vida, sem esperar pela próxima.

A resposta à questão sobre se a natureza da guerra mudou é negativa. A escala da guerra e a sua internacionalização aconteceram, mas o grupo jihadista, hoje reforçado com mais financiamento e mais mujaheddin, prossegue o objetivo de criar uma zona libertada de "infiéis" e o governo, também com maior apoio internacional, prossegue uma ação militar e securitária de resposta anti-terrorista, ainda que com a ausência da componente essencial de luta anti-insurgência, de conquista do apoio popular.

Em qualquer caso, não estamos perante uma "nova guerra", que se perpetua como forma de financiamento e de vida dos combatentes - embora tenha muitos elementos dessa tipologia. Na verdade, seria espúrio negar que as guerras jihadistas que grassam em várias regiões de África não têm associados ganhos monetários por parte de vendedores de armas e munições, de variados bens alimentares e produtos logísticos, para não referir os negócios permitidos pelo caos e pela ausência de autoridade estatal - tráfico de droga, tráfico humano e, nestes tempos de pandemia, tráfico de medicamentos contrafeitos, para dar alguns exemplos. Do mesmo modo, parte do financiamento da guerra no Norte Moçambique é financiado com pilhagens, venda de recursos transportáveis e com dinheiros provenientes de redes internacionais ligadas à expansão do jihadismo e do caos e existem relatos que traçam igualmente o financiamento a partir de redes criminosas e de doadores milionários em países onde o salafismo impera.

O tipo de guerra que ocorre em Cabo Delgado não é, infelizmente, resolúvel pela ação diplomática e diálogo político, pois não há entendimento possível entre versões excludentes da vida em sociedade. Para já e como a história nos ensina em relação à maioria das guerras, ela acabará por se resolver, mais tarde ou mais cedo, pela vitória de uns e a derrota de outros. Neste caso, esperemos que seja pela derrota do jihadismo radical, mas para que tal aconteça rapidamente, o governo faria bem em terminar com tiques autoritários típicos de regimes fracos e acossados, no caso ilustrados pela prática continuada de ocultação de acontecimentos não "oficiais", de criação de obstáculos à presença no terreno de observadores e investigadores independentes e de perseguição de jornalistas, procurando antes mobilizar o apoio generalizado da sociedade civil, dos credos religiosos e das forças políticas, em Cabo Delgado e em todo o país.

 

 

Fernando Jorge Cardoso, diretor executivo do Clube de Lisboa e coordenador do gabinete de estudos estratégicos e do desenvolvimento do Instituto Marquês de Valle Flor - IMVF.

Artigo originalmente publicado no Diário de Notícias, 30.06.2020.

Imagem: Menino espreita pela janela de uma sala de aula, Moçambique, julho de 2019. UN Photo/Eskinder Debebe.